“A dignidade não pode ser individual. Ela tem que ser coletiva. Porque o mundo tem que ser bom para todos nós da mesma forma que nós somos presentes da divindade para este mundo. Nossa luta é um compromisso político.”

Verônica e Valéria Carvalho
65 anos.

Fundadoras do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec)
Nascimento: Crato (CE).
Atuação: Crato (CE).

“Seremos semente. Haveremos de vingar”

À semelhança de uma filha que saúda a mãe, Valéria Carvalho o fez com a árvore centenária. Aproximou-se naquela manhã de terça-feira, arqueou o corpo para frente e ali, na mais antiga praça de Fortaleza, diante de um mar próximo o suficiente para encher os olhos de horizonte, reverenciou o baobá. Tocou o tronco, como num afago, baixou a cabeça e, tocando o próprio peito, proferiu palavras secretas, para dentro dela mesma e da calabaceira, enquanto tornava-se mais um elo entre o imbondeiro e o chão.

A irmã, Verônica, primogênita por cinco minutos de pressa para chegar ao mundo, observava tudo de longe. Anuía o gesto por reconhecer a importância da terra e, sobretudo, a centralidade daquele gigante, símbolo africano da sabedoria, da vida e da cura, com quem também conecta-se desde o próprio terreiro. Lá, no Crato, em meio a uma serra cujo nome indígena, Araripe, significa “onde o dia começa primeiro”, as gêmeas cultivam um exemplar da “árvore dos mil anos”. Compreendem, assim, o sagrado. E evidenciam o quanto são gêmeas não só de corpo. Compartilham uma vida em prol de outras.

Verônica e Valéria sabem, no entanto, que são igualmente distintas. Cada uma com timbres e cabelos e vestimentas de si mesmas. É justo isso o que faz uma subir e levar a outra. Fortalecer uma a outra. Complementar uma a outra. Ter, sobretudo, a própria pele como um palimpsesto de memórias no qual inscrevem-se sonhos, desbravamentos, felicidades e celebrações. Delas e do mundo. Dos mundos.

A mais velha espia semelhanças entre o que vestem ela e o repórter. Estampas idênticas, de África, de luta, como quem compartilha com ele verdades, dores e um jeito muito íntimo de atravessar a existência. Já a mais nova professa a esperança de ver o candidato que apoia vencer as eleições. Puxa uma cadeira vermelha, daquelas de bar, saca o celular e, sem cerimônias, inicia uma live no Instagram enquanto o cenário da entrevista é montado. Fala aos seguidores do @terreirodaspretas como é urgente vencer o fascismo.

O contato visual com o baobá é constante, interrompido apenas quando liga-se a câmera e a árvore passa, então, a ser cenário e testemunha de toda a boniteza que ali é dita. As irmãs complementam-se em prosa e poesia. “Até o fim dos nossos dias, nós seremos semente”, sentencia Verônica, ao passo que Valéria acrescenta: “haveremos de vingar.”

Distantes 600 quilômetros de casa, Verônica e Valéria percebem-se na cor cinza do cabelo, na destreza de como usar turbante, nas boas memórias do avô que lhes deu o sobrenome “das Neves” a partir de uma história vinda do céu e nos carinhos que trocam pelo olhar quando estão juntas. Ficam sempre lado a lado e intercalam pensamentos no tempo de uma cadência do respeito. Uma, a mais velha, com voz altiva e firme; a outra, a caçula, de voz mansa e assertiva.

Ambas, porém, falam mais ainda pelos sorrisos. É o gesto mais recorrente das gêmeas, oferecido no abraço de acolhida e no aceno de até logo. Elas amparam no olhar, abraçam com palavras e despedem-se com a intenção de o dia seguinte ser melhor. “Porque o mundo tem que ser bom para todos nós”, ensinam.

Confira a entrevista.

DEFENSORIA: Vamos começar do começo. Quem é Verônica, quem é Valéria e de onde vocês vêm?

VERÔNICA: Eu começo falando por um compromisso com a ancestralidade. Como eu sou mais velha cinco minutos do que Valéria, eu começo. E nós vamos mostrar a quem estiver lendo ou vendo essa entrevista um processo que nós chamamos de presentificação. Esse momento é de desembrulhamento. Nós, como vocês todos, somos presentes da divindade pra esse mundo. A gente vive um processo de evolução. Então, até isso a gente quer dizer. A gente vai se de desembrulhar. Então, eu começo dizendo: eu sou Verônica Neuma das Neves Carvalho.

VALÉRIA: E eu sou Valéria Gercina das Neves Carvalho. Nós, povo negro; nós, mulheres negras, temos nome e sobrenome. E nosso nome não é qualquer coisa. Diga!

VERÔNICA: O nosso nome é inspiração divina. Meu bivô, negro, que foi escravizado, quando ele foi liberto, ele morou numa comunidade quilombola. Saco dos Cansanção, em Pernambuco. Ele sai do Piauí pra Pernambuco. Quando ele veio embora em busca de dignidade, em busca de vida boa, ele precisava de um sobrenome. E aí ele sobe um morro e nesse morro ele vê um céu muito azul e cheio de nuvens. Aí, ele escolheu o sobrenome: Neves. E a gente perguntava: “vovô, se eram nuvens, por quê o senhor escolheu neves?”. Aí, ele dizia: “eu olhei pra baixo e vi que nós éramos muitos”. Então, na cabeça dele, ele ia pegar a nuvem, ia dividir e ficava um floquinho de neve pra cada um. É por isso que a gente faz questão de dizer nome e sobrenome, inclusive pra prestigiar a nossa ancestralidade e contar essa história, que é conectada com a divindade, com a espiritualidade.

Verônica Neuma das Neves Carvalho, mulher preta, educadora popular. Eu tenho formação! Eu sou assistente social e sou bióloga. Quero dizer isso porque normalmente se diz que os pretos e pretas não têm formação.

VALÉRIA: E eu sou pedagoga. O meu labor a vida inteira foi em sala de aula em terras alheias, porque faltou no meu chão uma coisa que falta, inclusive hoje, que é trabalho. Oportunidade de trabalho, dentre outras coisas.

VERÔNICA: Nós somos de uma família muito grande e que tem muito macho. Uma família grande, onde nossos tios, nossos primos são muitos homens. Só na nossa família que vieram mais mulheres. E essas mulheres vem fazendo o que tem que ser feito: reivindicando o nosso lugar na família, na comunidade, na sociedade. Mostrar o peso, a contribuição das mulheres, das mulheres negras, num espaço que é nosso.

VALÉRIA: Poder. Poder que está em nós, mulheres. Mesmo que lá atrás tinha mais homens, da minha avó pra cá são mais mulheres. E mulheres que sofreram todo tipo de opressão. Todo tipo de opressão. Minha avó, minha mãe, mas a partir da minha mãe as mulheres da família tomaram posse do seu poder. E a gente veio trabalhando isso, começando em casa. A nossa história começa dentro de casa, com meu vô e minha vó. É lá que a gente se percebe, se reconhece negro e negra, e sabe que não somos melhores do que ninguém.

DEFENSORIA: Vocês se perceberam assim ainda na infância?
VERÔNICA: Na infância! A gente se percebeu negra desde sempre. Desde sempre. Foi em casa. Foi na escola. Às vezes, eu encontro pessoas, mulheres, especialmente, adultas que dizem que se perceberam negras tardiamente. A gente se percebeu negra a vida toda. A vida toda.

VALÉRIA: Agora, tem uma coisa. Dentro de casa, era bonito. Era bonito conhecer a nossa história. Com os nossos avós, com os nossos pais, com os nossos tios-avós, era uma coisa bonita, de partilha, de contar a nossa história. Mas quando a gente vai pra escola…

VERÔNICA: …é onde a gente percebe as diferenças. Os aniquilamentos. Outra coisa que faz parte da presentificação: dizer que nós somos filhas do amor. Nós e todos os nossos irmãos. Nós somos filhas do amor. Isso faz toda uma diferença. É um homem e uma mulher que se encontram e decidem formar família. A gente diz isso com muito orgulho. Com muito orgulho. Nós não somos filhos de pontapé, como muitas pessoas nessa sociedade, infelizmente, que são filhos de processos de desamor. Nós somos filhas do amor. Por isso, a nossa fortaleza. Por isso que o afeto é tão importante na nossa caminhada. Por isso que a nossa caminhada é centrada numa coisa que a gente chama de amoração. É amor na ação. Tudo o que a gente faz tem afeto e tem amor, que é uma coisa que a gente reivindica muito.

DEFENSORIA: Mas como foi esse processo de se reconhecer dentro de casa? Como se deu?
VALÉRIA: Olhe, foi assim. Meu vô era muito presente nas nossas vidas. Meu vô era autodidata. Ele juntava os netos, os filhos, os sobrinhos e todo domingo ele dizia: “vamos conversar miolo de pote”. E a gente dizia: “vovô, pote não tem miolo”. Ele era pedagógico. Ele pegava o pote aí dizia: “o que vai no pote?”.

VERÔNICA: “Água”. Todos nós respondíamos: “o que vai no pote é água”. Se o pote tá vazio de água, ele tá cheio de quê? E aí a gente politiza hoje: “ele tá cheio do que faltou para quase 700 mil pessoas desse país. Ar.”

VALÉRIA: Ar. Como nós éramos crianças, pra ficar mais fácil, ele dizia: “seu Lusiz, quando quer dar um agradinho pra vocês, o que ele coloca no pote”. Meu pai fazia aluá. Aluá é docinho, feito de rapadura, de pão, de abacaxi… Aquela miolagem, aquelas conversas, hoje a gente transforma em verbo. Miolar é verbo. E é importante porque fala de nós. De cada um de nós.

VERÔNICA: O miolo de pote, quando o pote tá vazio de água, ele tem o quê? Ar. Quando ele tá cheio, tem água. E ar e água são o quê? Vida. Ninguém vive sem ar e sem água. Então, conversar miolo de pote é falar sobre vida. Sobre a nossa vida. A gente adota o miolo de pote hoje como uma tecnologia social, como uma metodologia do nosso trabalho. Hoje, a gente afirma: miolar é verbo. É miolar, é miolo de pote, é miolagem… O importante é isso: a gente precisa se juntar e miolar muito.

VALÉRIA: Nessas miolagens com a família, a gente aprendia com pai, com mãe, com vô, com vó a ser fortaleza praquilo que tava do portão pra fora da nossa casa. O que a gente ida enfrentar. Mas todo esse aprendizado foi com muito afeto e nos trouxe fortaleza. Nos trouxe a certeza de que o que vai mudar esse mundo é o afeto.

VERÔNICA: E essa nossa identidade negra foi construída em casa, com o afeto. Agora, as mazelas advindas da identidade negra foi o mundo, especialmente o mundo da escola e o mundo do trabalho, que nos impôs. Foi aí onde a gente veio perceber que ser negro e negra na sociedade brasileira é extremamente desafiante. É risco de vida, inclusive.

DEFENSORIA: Partindo dessa perspectiva, de que ser negro em casa era bonito e fora era perigoso, como era ser mulher negra no contexto do Cariri?

VERÔNICA: Meu irmão, o Cariri é bom, é diverso, mas com uma população negra que se nega. A historiografia não nos traz como construtores dessa sociedade. Os xingamentos começavam na escola. Nega do cabelo ruim…

VALÉRIA: E a gente já dava a resposta, porque a gente aprendeu em casa. “Ruim é a sua falta de conhecimento”. Naquela época, a gente não tinha ainda esse conhecimento desse racismo estruturante na sociedade. A gente sabia mais ou menos que ele existia e que ele ia impactar na nossa vida.

VERÔNICA: Na nossa infância, como é que a gente constatava? Constatava a partir dessas práticas, nas brincadeiras. A gente constatava e reagia. E reagia. Nós éramos crianças; a gente ia pra porrada mesmo. A gente ia pra briga. Por conta das brigas, a gente ficava de castigo na escola. A gente ficava muito de castigo na escola. Mas, em casa, nós não ficávamos. A gente não chegava, minha mãe ia atrás e sabia que nós estávamos de castigo por conta das nossas reações, por não aceitarmos a colocação que nos era dada. Aí, ela levava a gente pra casa e ela, meu pai e meus avós conversavam muito com a gente. E eles quem diziam que a gente ia ter que enfrentar. Enfrentar na escola e no trabalho essas coisas. Agora, que a gente colocasse na nossa cabeça que a gente não era melhor do que ninguém. Mas também que a gente não era pior do que ninguém. Então, eles validavam as nossas reações. A gente nunca ficou de castigo em casa porque a gente brigava na rua por conta dessas coisas. Era legal demais, viu?

DEFENSORIA: Foi nessa época da vida que vocês tiveram alguma compreensão, em alguma dimensão, que a luta de vocês não era só de vocês?

VERÔNICA: Isso aconteceu mais na nossa juventude. Nós somos aquelas jovens que enveredou por organizações. Por exemplo: a gente começou por grupos de jovens. A gente entrava em grupos de jovens, inclusive, da igreja. Foi a partir daí que a gente começou a tomar posse e conta de uma coisa que a gente não ia resolver sozinha, em casa. Que só aquela organização familiar não ia dar conta. Que a gente precisava participar de coletivos, de grupos, de ampliar o número de lutadores e lutadoras. Pra lutar contra o preconceito racial.

DEFENSORIA: A pauta racial, então, sempre marcou?
VERÔNICA: A pauta racial marcou, mas não era só a racial. A nossa região era notadamente marcada pelo machismo, pela violência contra a mulher muito exacerbada. As lutas se juntam. Não é uma coisa só.

DEFENSORIA: Vocês tinham quantos anos quando começaram a participar de movimentos? E o que vocês encontram?

VERÔNICA: A partir dos 15, 16 anos, a gente começa a se organizar em coletivos. A gente encontra primeiro uma solidariedade em algumas coisas. Não na questão do racismo. A questão do racismo, inclusive nos coletivos, foi luta. Foi luta, minha gente. No movimento feminista, que é tão caro pra gente, a questão da luta negra, da mulher negra, é desafiante. Porque são pautas diferenciadas. Nós temos pautas diferenciadas.

O genocídio da população jovem, negra e periférica impacta na nossa vida de mulher negra. E muito! Ele é uma luta nossa. É uma luta nossa! Porque esses jovens são nossos filhos. São nossos irmãos. São nossos sobrinhos. Por isso que a gente tá no enfrentamento. Há uma divisão no movimento feminista. O que nos une? Nos une que somos todas mulheres. Mas nossas pautas são todas diferenciadas. A terra, pra mulher negra, a luta pela terra é fundamental. É a terra que forja a nossa identidade. Se é pras outras mulheres, não sei.

Por que que hoje nós estamos aqui sem turbante, que é algo tão importante pro nosso povo e pra gente? É a nossa coroa. Mas a gente não quis usar hoje porque a gente quer mostrar os nossos cabelos brancos. A gente quer mostrar os pinotes e os vexames que nós passamos nessa vida pra ser o que nós somos. Pra ser resistência. Pra existir, a gente teve que resistir. E resistir muito. Então, os cabelos nevados são testemunha dos pinotes que a gente teve que dar nessa vida.

DEFENSORIA: A gente ouve muito que a gente vive numa democracia racial, em que todos têm as mesmas oportunidades e o racismo não existe. Como a gente responde a esse mito, que foi criado por volta de 1930 e se perpetua há décadas prejudicando o povo negro?

VERÔNICA: É. E pensar que foi agora, recente, por ocasião daquela conferência em Durban [em 2001], que o Estado brasileiro assume pro mundo que nós não somos essa democracia racial. Isso a gente já vem dizendo há muito tempo, mas é o Estado brasileiro que assume perante o mundo inteiro e, a partir daí, já vem implementando uma série de políticas. Dão conta? Absolutamente.

VALÉRIA: Mesmo a gente sabendo que esse mito da democracia racial vem de longe, nós e os nossos mais próximos vem tentando dizer que isso não existe. E a gente faz isso buscando informação e dizendo, com todo o respeito ao serviço da lavadeira e da empregada doméstica, que a gente pode buscar conhecimento, se formar e não queremos mais colocar a trouxa de roupa na cabeça nem estar na cozinha de ninguém. A cozinha que a gente quer estar é a nossa. E quando a gente quiser.

Esse mito da democracia racial, como é que a gente vem tentando combater? Primeiro, se juntando. E, segundo, buscando conhecimento, formação, dignidade na escola. Buscando, com muita força, entrar nas universidades, que é algo desafiante até hoje. Buscando trabalho digno. Nós migramos. Nós somos migrantes. A gente saiu daqui pro Cariri, como muitos saem do Ceará, em busca de dignidade. Em busca de escola. Em busca de trabalho. Em busca de lazer. Porque pra nós, povo negro, o que estava posto? O que está posto hoje também: se conforme com o ensino médio e um empreguinho em loja ou então segurando bandeira pra um monte de gente. Isso a gente não quer.

VERÔNICA: Colocar esse mito da democracia racial pros nossos, dos movimentos, trabalhar isso entre os nossos é fácil. O difícil é você ter que sensibilizar quem tem informação. É você chegar nas instituições públicas, que devem prestar um serviço de qualidade pro público e não encontrar empatia. Eu já fui registrar BO contra uma autoridade na minha cidade. E o delegado dizia assim: “vocês são muito pretensiosas de querer registrar esse BO”. Racismo, racismo. O primeiro caso de racismo que a gente tem tipificado lá na nossa região. Então, não é fácil não, em especial nas instituições públicas, nos hospitais, nas maternidades…porque somos ousadas. Porque a gente tá querendo coisa demais. É difícil, é difícil, é difícil, mas nós estamos na luta. Porque nós somos poder! Nós existimos nessa sociedade! Nós trabalhamos, nós pagamos impostos, nós construímos essa sociedade. Então, não há como a gente se sentir menor. Nós não somos menores!

Nós somos migrantes! Nós saímos de perto da nossa família, dos nossos amores e amoras, pra buscar vida boa. E isso é violento. Você sair de perto de quem você ama pra tentar a vida em outro lugar. Por que é que a gente não pode construir vida boa aqui? Tudo aquilo que a gente passou lá, a gente prometeu pra nós mesmas que a gente ia fazer o necessário pra que os nossos e o filho de ninguém precise passar os vexames que nós passamos fora.

DEFENSORIA: Quando você diz “lá” é onde? E vocês passaram o quê?

VERÔNICA:
Cidade grande. Muita violência, muito racismo. O primeiro emprego na cidade grande, São Paulo, eu levei minha marmita e na hora de almoçar a chefe grita: “vá comer no banheiro”. Vi que o emprego não prestava e eu mesma me demiti. Fui buscar outro. Eu era louca pra estar no atendimento, porque eu sou uma devota de Nossa Senhora da Apresentação. Eu gosto de me apresentar. Mas a mulher dizia que eu não podia ir pra plataforma atender o povo. Por quê? “Com esse cabelo?”. Ela falou do meu cabelão e eu vi que não dava pra gente ficar ali. A gente tinha que voltar pra nossa cidade. A gente viveu coisas muito piores. Eu não sei como eu não enlouqueci, de tanta violência por eu ser quem eu sou e por eu não me achar diferente de outras pessoas na perspectiva do direito.

VALÉRIA: Deixa eu contar o meu? Eu vou contar o meu emprego. Eu sou professora. Eu migrei pra São Paulo. Quando eu cheguei, me causou uma estranheza. Todo mundo muito branco. Os meus colegas, muito brancos. Estudaram na USP, estudaram na PUC, estudaram em Mackenzie e aqueles currículos… E eu cheguei lá.

Primeira estranheza: o sotaque. Segunda estranheza: o modo de se apresentar, de se vestir. Eu não tinha problema nenhum aqui com o meu cabelo. Mas, pr’aquele povo, não podia. E tinha uma regra nas escolas onde eu trabalhei: tinha a porta dos professores e a porta dos alunos. No contato com os alunos, eu comecei a observar que eles eram filhos dos meus iguais. Eram filhos de nordestinos, filhos de cearenses, gente que, como eu, estava ali em busca de dignidade.

Comecei a entrar pela porta dos alunos. Isso causou um pantim lá na escola, a ponto de vir o pessoal do que aqui chamam de Crede, mas lá tem outro nome, pra me proibir de entrar pela porta dos alunos. Mas isso não me intimidou. Eu continuei entrando pela porta dos alunos porque era a oportunidade que eu tinha de dialogar com os pais, com os avós. De conhecer os meus alunos. E eu acho que a gente só vai mudar essa situação que a gente tá vivendo pela educação. E uma educação que a gente não só conheça o seu aluno, mas conheça a família dos alunos.

Nós, todos nós, precisamos cuidar das crianças. As crianças estão sendo aniquiladas. Aonde? Na escola. Desde a escola infantil. Uma criança negra não recebe um abraço do seu professor. A malfadada música “os cabelos de fulana é loiro e é cacheado, quando ela coloca o pente, abala toda a cidade…”

VERÔNICA: “…no meio de tantas flores, não sei qual escolherei/ aquela que for mais bela, com ela me abraçarei”. Essa música era cantada na época da minha mãe, na minha época e ainda hoje algumas pessoas sabem essa música.

VALÉRIA: MUITAS pessoas!
VERÔNICA: Iam cantando e as meninas iam sendo abraçadas. Quando ia chegando nas nossas vezes, tocava o recreio. E isso se repetia e se repete ainda hoje e tira o abraço a uma criança negra. E quando você não abraça uma criança negra na escola no meio de tantas outras você achata com a autoestima dela. E isso repercute pra vida inteira. A falta de afeto repercute.

DEFENSORIA: E o Grunec, como surgiu?
VERÔNICA: Quando a gente volta de São Paulo com esses marcadores da nossa vida e muitos aprendizados, porque teve muita coisa boa também, a gente precisava se organizar depois de tantos anos fora. Foi numa aula de natação que um grupo de professores, estudantes, artistas, tinha até um padre, a gente começou a dialogar: no Cariri tem negros? Como é que eles estão vivendo? O que eles estão fazendo?

A gente estava embalada no que tava acontecendo fora, nas experiências que a gente tinha fora, nas notícias… A partir desses questionamentos, esse grupo resolve se reunir. Quando foi em 21 de abril de 2001, esse grupo sobe na Chapada do Araripe e resolve firmar que o grupo tinha que existir. Passa a ter uma existência jurídica. São 23 anos de existência, de luta. O Grunec é um marco de resistência. De resistência negra. De busca por um posicionamento antirracista. E esse grupo vive um aquilombamento.

A princípio, a gente queria se mostrar em todos os espaços do Cariri, que existia um grupo que tava discutindo as questões étnico-raciais. O povo Cariri tem a nossa cara preta. Ele tem a nossa cara linda e preta.

VALÉRIA: E por que 21 de abril? A gente comemora o quê? A gente celebra o quê? Tiradentes. Um herói da nação brasileira.

VERÔNICA: Não é herói de preto. Ele é herói da nação brasileira. Foi estratégico, porque a partir da existência jurídica do Grunec, a gente começa a pautar a história dos heróis. E questionar, inclusive: como é que a nossa sociedade trata os nossos heróis? E aí a gente coloca Zumbi na centralidade, coloca a beata Maria de Araújo, coloca a Preta Simoa, coloca o Dragão do Mar, coloca o beato Zé Lourenço e aí vai…


DEFENSORIA: Considerando que o Ceará apaga a existência negra, como se deu esse trânsito nos espaços do Cariri?
VALÉRIA: Tenso. E ainda hoje é tenso.
VERÔNICA: Porque muita gente não compreende essa luta. Entende até a questão dos tradicionais, chama os grupos, chama os reisados, chama os maracatus, mas não conecta uma coisa fundamental, que é a sua identidade. É como se fosse uma coisa desconectada da outra. A negritude serve pra dançar, pra brincar, pra enfeitar. Pra enfeitar.

O Grunec vem pra fazer essa quebra. Pra discutir a negritude, vamos discutir a identidade, vamos discutir o acesso às políticas públicas, vamos estudar muito. Não é fácil. Não foi fácil. Mas eu não quero falar né disso não. Quero falar é do impacto da existência do Grunec. É extremamente positivo. Às vezes, a gente coloca assim: a gente tem um túnel grande pra percorrer e tem uma luzinha lá no fim do túnel. Pra nós, não importa essa luzinha. O que importa são os rastros das passadas que damos no caminho.

Quando a gente coordena o mapeamento das comunidades quilombolas e joga pro mundo que há traços negros na terra da luz, quando a gente publiciza isso, visibiliza a existência desse povo negro, isso é um marco extremamente positivo. Isso significa que a história do Ceará precisa ser recontada a partir disso. Nós temos hoje agrupamentos de pessoa que se organizam de uma maneira diferente, que se reivindicam negros e quilombolas, que tem o seu território demarcados, temos povos em territórios romeiros, como é o caso de Juazeiro do Norte, e junto a essa região romeira tem centenas de terreiros de candomblé e umbanda. É importante colocar essas questões. Visibilizar a existência desse povo que se organiza dessa maneira e que são sujeitos de direitos e têm todo o direito de se conectar com o sagrado da maneira que bem quiser.

Nós temos povo quilombola, nós temos manifestações culturais das mais diversas e genuinamente negras, nós temos marcadores  demais.

DEFENSORIA: Como vocês receberam a notícia de cerca de dois anos atrás de uma suposta pesquisa científica que indicou a origem do cearense como não sendo a África e sim os vikings?

VALÉRIA:
Nós não recebemos. A gente simplesmente deleta!
VERÔNICA: Nós existimos! Nós temos história! A partir de nós, porque tudo começa em nós, na nossa família, nós temos um ancestral que veio da Nigéria. Só isso já serve pra gente não validar essa pesquisa. Pra nós, ela não existe. E pra muitos grupos com quem a gente trabalha ela não ressoa. Não ressoa.

VALÉRIA: Nós temos tanta coisa pra fazer, mas tanto, tanto, tanto, entendeu, que quando chega uma babaquice dessa nós não vamos perder tempo com isso não. Não vamo gastar nossa energia com isso não. Vamo cuidar daqui, de nos formar, de trilhar nosso caminho. Pesquisas como essa, e tem outras, a gente simplesmente ignora.

DEFENSORIA: A partir do contexto de agora e considerando que a população negra não aceita retrocessos, daqui pra frente, a gente precisa priorizar o quê?

VALÉRIA:
A primeira coisa é a vida! Nós precisamos estar vivos e vivas! A primeira coisa é garantir a nossa vida. Garantindo a nossa vida, estando vivos, a gente precisa se aquilombar.

VERÔNICA: Viver o aquilombamento! E entender que juntos…num tem aquela frasezinha “quando o povo se junta, o poder se espalha”? É isso. A gente tem uma máxima que não é nossa, mas a gente reproduz, que é o seguinte: “ou a gente se junta ou a gente se lasca”. Não tem outra solução. A gente precisa se juntar. Precisa se juntar e mudar a fotografia do poder nesse país, nesse estado, em todo canto. Se as mulheres são a maioria da população de mulheres e se a população negra é maioria na população geral, então por que que a gente não se vê nos espaços de poder? Que diabo é isso? Há a necessidade de viver o aquilombamento, nos fortalecer entre nós e ir à luta!

DEFENSORIA: O que vocês chamam de aquilombamento? Pra quem não conhece a expressão, o que significa?
VALÉRIA: É se juntar, meu filho. É se juntar em torno de uma causa. É a necessidade de permanecer vivo e viva. Porque a gente vê que os nossos iguais estão sendo mortos por essa política de segurança que vem nos matando e a gente precisa ter a capacidade de dizer isso.

VERÔNICA: E também assim, ó. O povo diz que “nós somos uma sociedade multiétnica”. Não dá tempo de dizer “eu sou multiétnico” pr’um policial que nos aborda e põe um rifle na nossa cabeça. A bala chega antes. A gente ainda estamos num estágio de ter que sensibilizar. Entre o que você escreve, o que você fala e o que você faz existe uma distância.

Nós já fomos abordadas na porta da nossa casa. E se você vai reivindicar na Polícia essa abordagem truculenta, o povo vem com essa de “nós somos uma sociedade multiétnica”. Então, não dá. Nós somos pretas e vou dizer. Eu acho que toda mãe preta hoje repensa a maternidade por conta da violência. Eu às vezes fico olhando minha irmã que tem um adolescente. A cada dia que passa, ela vai criando uma ruga. De preocupação. Porque o menino tá crescendo. E quanto mais ele cresce, mais ele reivindica, mais ele está suscetível às violências que o Estado nos impõe pelo simples fato de sermos negros! É preciso haver o entendimento que ser negro nesse país é perigoso. É perigoso!

VALÉRIA: Outra coisa que me causa estranheza: nós, negros e negras, é que sempre estamos nessa luta antirracista. Que estamos à frente. Mas a luta antirracista é pra todos.

VERÔNICA: É da sociedade, principalmente dos brancos. Os brancos é que têm que se conscientizar que são racistas!

DEFENSORIA: Vocês falam muito que a educação vai gerar mudança. O que mais é necessário?
VALÉRIA: Não é “o que mais” não. É o que eu fiz e o que eu sinto falta hoje. Muitas vezes, os professores dizem que não têm formação antirracista ou que não sabem por onde começar. Olhe pro seu aluno. Olhe. O seu aluno é a sua enciclopédia. Converse com seu aluno. Olhe. Toque. Incentive ele a saber de onde ele veio.

Obviamente que a gente tem que estar na universidade. Mas a gente só chega na universidade se a escola básica for bem feita. Eu olhei pro aluno. Eu valorizei ele. A família dele. Perguntava de onde ele era, pedia a certidão de nascimento. E muitos nem tinham. Aí, a gente ia no Poupa Tempo, que é um espaço lá em São Paulo resolve essas coisas. Incentivava a tirar o RG. Quando via que não tinha o nome do pai no documento, procurava saber o porquê. Essa conversa e a educação têm que estar casadas com a família. Não dá pra escola tá jogando pra família, a família jogando pra escola e o adolescente ficar perdido ali no meio.

O que precisava no meu tempo de sala de aula era olhar pro aluno. E eu sei que fiz isso. E o que precisa hoje, ainda, é olhar pro aluno. Conhecer o aluno.

DEFENSORIA: Mas vocês acham que ainda cabem essas desculpas de “não tenho referências” e “não sei por onde começar”?

VERÔNICA:
Cabem não! É igual a questão das cotas! Cabe a gente discutir ainda? É uma lei, cumpra-se! Se não tá cumprindo, a gente entra no sistema de justiça e faz valer. A gente já se deparou muito com isso de “não sei por onde começar”. Comece! Olhe pro seu aluno! Veja quem ele é! Depois, vamos ver quantos professores negros a escola tem, fazemos um censo, vamos pra comunidade ver onde tem um terreiro de umbanda ou candomblé, tem outras manifestações ou mestres de cultura…

VALÉRIA: Mas a escola não olha pra isso. A escola é encastelada. Encastelada e tendo seus currículos e suas grades. Ó, o nome já diz: grade. Você quer se livrar das grades e, quando chega na escola, as crianças lá, tendo que reproduzir uma coisa que tá numa grade curricular. É triste!

VERÔNICA: E há como fazer nas brincadeiras. Brincando, você termina adotando, ensinando práticas que são da ancestralidade negra. O brincar.

VALÉRIA: Quantas escolas já trouxeram seus alunos nesta praça? Quantas escolas conhecem a história desta praça? Nós viajamos quantos quilômetros pra estarmos aqui, saudando nosso ancestral?

VERÔNICA: Eu sei dizer que em tudo o que acontece há como você pautar a questão do racismo, do machismo, trabalhar questões de gênero, de classe e fazer todos esses recortes pra pautar uma educação que realmente promova a vida das pessoas. O aluno não pode estar numa sala de aula e, na hora de trabalhar gênero, ele desistir de estudar. O que é isso?

VALÉRIA: Quando eu dava aula, as carteiras tinham que ser alinhadas. Eu chamava isso de “boca e nuca”, porque um aluno ficava olhando pra nuca do outro. A primeira coisa que eu fiz foi acabar com isso. Eu encostava todas as carteiras na parede e a gente ficava com aquele espaço enorme pra gente sentar no chão. E a gente sentava no chão.

Muitos alunos moram ou são de terreiro. E a culinária que é feita dentro de terreiro, ela é trazida pra dentro da sala de aula? Porque eu ainda acho que nós só temos um jeito. Pra gente sair dessa mazela, só tem um jeito. Educação. Pra mim, hoje e sempre, porque aprendi com meu avô, porque aprendi com minha avó, porque aprendi com meu pai, porque aprendi com minha mãe, porque aprendi com meus tios-avós, eu penso que se a gente tiver educação e conhecimento, a gente vai buscar as tantas outras coisas que nos faltam. E educação como princípio. Pra mim, é como princípio. Amoração. Amoração.

O professor que tá lá na frente da sala precisa se investir de amor pelo seu fazer. E ter consciência de que o seu fazer vai fazer diferença e trazer dignidade pr’aquela turma que tá ali, na sua frente. Então, se eu posso dizer algo pra vocês é: faça com amor. Tudo o que fizer, faça com amor. Sem romantizar. Não tô falando desse amor romântico não. Faça com afeto. Preste atenção ao que está na sua frente e ao seu lado, e olhe pra trás.

DEFENSORIA: Foi por isso que vocês criaram o Terreiro das Pretas?
VERÔNICA: O terreiro, a gente costuma dizer que é um pedacinho do céu. É um quilombo. A gente chama de terreiro porque vem de terra. Terra que forja a nossa identidade. Terra porque tá ligado à espiritualidade. Lá é um espaço de espiritualidade? É. Lá tem todos os elementos. Tem água, tem terra, tem o ar, tem floresta lá dentro… A gente pretende que lá seja uma escola aberta.

Nós somos trabalhadoras aposentadas. Então, a gente pretende que tudo aquilo que a gente, com muita humildade e respeito, ensinou a algumas pessoas e aprendeu com muito mais gente, a gente pretende implementar naquele espaço. Terreiro não foi nós que demos o nome não. Foram as amizades. A gente sempre foi chamada de “as pretas”. Então, quando a gente mudou pra morar ali, aposentadas, pra viver nosso status de aposentadoria, o pessoal chamou de Terreiro das Pretas.

Terreiro das Pretas é uma extensão do Grunec. É o nosso local de morada, mas é também uma extensão do Grunec. É uma escola aberta, onde a gente implementa os princípios da circularidade, da amorosidade. É um ponto de cultura. Se vai falar de agroecologia e permacultura, a gente tenta fazer tudo isso lá dentro.

VALÉRIA: A gente costuma dizer que lá é uma escola de saberes, de fazeres e de sabores. Tudo lá é construído junto. E a gente celebra tudo. Tudo o que acontece lá.

VERÔNICA: Chegou uma galinha nova? Vamo celebrar. A gente celebra as plantas. A gente colhe o milho, que é uma semente criola. A gente faz oficinas plantando e pintando. A gente faz cortinas. É realmente uma escola. E aprende quem tem juízo (risos). É legal. É legal demais o Terreiro das Pretas. É o local que a gente escolheu pra viver os últimos dias de nossas vidas. Embora o espaço esteja na família há muito tempo, nós estamos lá há pouco tempo. Há cinco anos, foram os contextos políticos que nos colocaram lá. Porque a gente sofreu inclusive ameaças de morte por causa das lutas. A gente se coloca inteira na luta e nem todo mundo entende.

VALÉRIA: Nós somos urbanas. Não foi só a vontade que nos levou a morar lá. Foi o medo e a gana de que eu preciso estar viva porque tem muita coisa pela frente. Pra gente viver, pra continuar viva, a gente teve que se mudar.

DEFENSORIA: Nós estamos aqui diante de um baobá de mais de 100 anos. E vocês também têm um baobá, bem mais jovem, no Terreiro. Por que plantar um baobá? O que essa árvore significa?

VERÔNICA: O baobá, pra gente, tem um significado muito grande. É um farol. Muita gente chega naquele terreiro não é nem por causa de Valéria nem de Verônica. É o farol. O farol é o baobá. O farol é o ancestral. A gente quis ficar com ele, mas ele também quis ficar com a gente. Por isso que a gente pode dizer que viu um baobá nascer, que viu um baobá florescer. E já tá com alguns frutos. Então, pra nós, o baobá é simbólico. E não é só ele. Lá em casa tem muitos e já saíram muitos de lá.

Todas as comunidades negras e quilombolas da Região do Cariri com quem a gente tem alguma relação têm um baobá que saiu lá de casa. Elege-se um guardião e festeja-se quando ele desce ao solo sagrado. As comunidades festejam. É muito interessante. O baobá é a vida mais importante que tem naquele terreiro. É o que vai ficar pra além de nós. Quando a gente se encantar, ele vai estar lá pra testemunhar a existência do povo negro e de um povo que veio do além-mar ali pr’aquela região.

VALÉRIA: Eu tô constatando agora. Esse baobá aqui ele tá hibernando. Ele começou a hibernação dele. O nosso também. Existe um fio que liga o nosso lupinha a esse aqui, que eu não sei o nome. E ele tá olhando pro mar.

Só nós, pretos e pretas, que sabemos a nossa história e a importância do baobá e a importância desse marzão, sente a emoção que eu senti quando eu estive ali. É lindo demais, demais! Salve toda a nossa ancestralidade. Salve, salve, salve! Que ela nos dê força pra gente continuar vivas e vivos!

VERÔNICA: Essa luta é um compromisso político. Fazer esses enfrentamentos e essa luta que a gente faz agora, a gente deve isso à minha avó, a meu avô, à minha mãe, à minha bisavó, que eu conheci. É um compromisso político e é um compromisso ainda maior com quem vem depois de nós. Com os nossos mais novos. A gente precisa deixar o mundo melhor pros nossos mais jovens. Eles não precisam e não podem passar pelas mazelas que nós passamos.

VALÉRIA: E o amor que a gente fala também é um compromisso político. A amoração também é um compromisso político. Amoração é um compromisso político. É a ferramenta que a gente usa puxando a miolagem.

VERÔNICA: Professores, nós estamos à disposição! Estudantes, nós estamos à disposição pra contar histórias! E não é qualquer história. É a sua história! Juízes, advogados, defensores, vocês precisam compreender isso. E quando assinarem algo, tenham o sentimento de que vocês estão mudando a vida de pessoas.

VALÉRIA: O tempo é o maior termômetro na vida de uma pessoa. O tempo. É ele quem vai dizer da sua caminhada. E vai permitir, dependendo das suas ações, dos seus fazeres, vai deixar você dormir. Nós temos três corpos: o físico, lindo e preto; um outro corpo, que chama emocional; e um outro, que se chama espiritual. Eles precisam estar alinhados. Se eu tenho uma dor na unha, é porque o meu espiritual já deu um sinal lá em cima de que algo não está bom. Então, cuidem dos seus três corpos. Cuidem. Não pensem só no dinheiro que vai cair na sua conta não. Porque pode ser que esse dinheiro não dê conta de você cuidar desses três corpos.

DEFENSORIA: Que futuro é esse que vocês estão construindo pras gerações negras futuras?
VERÔNICA: Tem muito militonto aí no mundo. Mas, pela minha caminhada, o que posso aconselhar é: o exemplo é tudo. Busque a coerência. Faça o que você fala. Não permita que forças estranhas, energias não compatíveis com você se aproximem de você. A gente precisa viver o que fala dos outros. Não desconecte sua ação do afeto, do amor.

Do mesmo jeito que a gente luta por política pública de saúde e educação, devia ter política pública do amor. Devia ser um direito você viver essa fraternidade. Eu quero deixar pros meus esse sentimento de projeto de bem viver. Envolver as pessoas nos projetos de amor. As outras coisas vêm. Temos que viver mais a solidariedade e a empatia. São palavras que precisam ressoar mais dentro da gente. E outra coisa: luta. Luta! Eu não faço guerra; eu faço luta. Lutas pelo bem-viver.

Infelizmente, a gente ainda não consegue os nossos direitos. Tudo é com muita luta. Temos que animar a juventude pra luta. Nós precisamos estar animados pra luta. E eu, com 64 anos, tô aqui, cheia de vitalidade, querendo animar a juventude pra luta. Não dá pra ficar sem movimentar.


VALÉRIA: O futuro que eu tô construindo é um futuro que eu preciso fazer aquilo que o meu pensamento e a minha boca falam. Obviamente que tem muitos pensadores, muitos livros, muitas teses de doutorado que são luzes. Mas eu digo: se eu colocar em ação com afeto, com amor, com solidariedade, certamente, eu serei espelho. Se eu sou espelho, a lindeza que você vê em mim é você. É você aqui. Eu tô caminhando. Onde eu vou chegar, eu não sei. E o que eu quero, eu sei o que eu quero. E nada é individual. É coletivo.

VERÔNICA: Até o fim dos nossos dias, nós seremos sementes!
VALÉRIA: Haveremos de vingar!