“Se Deus me levar agora, acho que vou sofrer muito porque vou partir sem ver uma missão cumprida. A demarcação da terra é importante não pra mim, que já tenho idade, mas pra minha família, que precisa da terra. Porque da terra o indígena tira tudo.”

Raimunda Tapeba
78 anos.

Pajé do povo indígena Tapeba.
Nascimento: Caucaia (CE).
Atuação: Caucaia (CE).

“Quando eu nasci, a terra era livre”

“Meu fi, pegue ali o penacho”. O pedido de Raimunda a Sérgio está para além da maternidade. É de uma pajé com o desejo de falar devidamente adornada. Como quem materializa uma autoridade. Afinal, é ela a liderança de 19 povos e aldeias indígenas do Ceará. É dela que diretamente descendem 97 pessoas, entre filhos e tataranetos. É por causa de uma luta encampada por ela e outras mulheres que 170 famílias resistem à grilagem das terras à beira do rio Ceará.

Protegida por semelhantes e encantados, a pajé vive há quatro décadas às margens da CE-085, numa terra cujo lado oposto é um espelho d’água transformado pelo tempo e pela ação humana. Raimunda Tapeba testemunha o piorar do mundo por adoecimentos de corpos e almas. Mas permanece ali, como quem responsável é por acolher moradores e visitantes de Caucaia, o lugar de nome indígena que a pariu e abriga.

Entre casas, árvores, gentes e bichos, a curandeira se confunde com a natureza. Caminha tal qual uma entidade. Que nem a benzedeira que de fato é: imensa, apesar de miúda; de voz mansa, apesar de firme; indígena e também umbandista; humana, tanto quanto mística. Sincrética. De passo ligeiro e memória afiada, dizendo que só sai da Comunidade da Ponte depois de ver demarcada a terra na qual mora.

“Quando eu nasci, a terra era livre”, recorda, enquanto conversa com a equipe da Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública numa rua com nome do rio e do estado que a forjaram liderança no embate com muito homem branco metido a proprietário de tudo. Raimunda guerreia para o povo ao qual pertence ter um pedaço de chão de fato e de direito.

Pajé Raimunda concedeu entrevista sob a sombra de um tamarindeiro tão antigo quanto ela, talvez até mais, nos oferecendo como cenário os pássaros, peixes e céus, e o mangue e as canoas usadas pelos Tapeba para caça. Povo esse que fez do parapeito de contenção de enchentes a escora ideal para ouvir os dizeres de uma mulher com quase 80 anos e sabedoria de muitas vidas. Sim, a conversa teve plateia.

A indígena até é dada às tecnologias. Mas só a algumas. Tamanha a procura no correr dos anos por jornalistas vindos de todo canto para ouvi-la, habituou-se às câmeras, aos microfones, aos gravadores e às fotografias. Aceita, inclusive, o desafio do fotógrafo ZeRosa Filho de ser, por um instante, ela a responsável por tirar os retratos. E retratos dele. Um tanto desajeitada, a mulher segura a máquina, como quem curia os botões. E consegue habilmente clicar o homem. Um atesto do quão grandiosa é a inteligência da natureza e o quão ela sempre vai se sobrepor à soberba da modernidade. “Modernidade.”

Com celular (ou smartphone, como diz a moçada), porém, a tapeba não quer conversa. De WhatsApp, então, está a quilômetros de distância. Intencionalmente. Deixa tudo a cargo do filho. Prefere o bom da vida, que pra ela é andar à beira do mangue, espiar os bichos e fazer orações em intenção de curar a dor do outro sem cobrar um tostão por isso. É viver uma vida em sintonia com a natureza, no intento de estarmos todos conectados, como de fato estamos. Os ancestrais e encantados nos ensinam isso há séculos.

Confira a entrevista.

DEFENSORIA: Pajé, pra quem ainda não a conhece, quem a senhora é? De onde a senhora vem?

PAJÉ RAIMUNDA: Meu nome é Raimunda. Sou de 1944. Vou agora fazer 78 anos, se Deus me permitir que chegue lá, bem pertinho de 80. Eu sou filha de Caucaia. Meu pai, avô, tudo era de Caucaia, só não a minha mãe. Ela era de Aracati. Nasci e me criei na Comunidade do Trilho, em cima do Corte, onde hoje em dia tem a Escola do Trilho. Saí de lá quando o Cacique Perna de Pau, meu bisavô, morreu. Eu tinha dez anos. E nós fizemos o enterro dele no Cemitério do Caranguejo, dentro de Caucaia também.

Com 16 anos, eu saí da comunidade, passei uns dias noutro local. Aí, em 1972, eu vim de onde eu morava pra caçar aqui, à beira do rio. Porque a gente tinha sido expulsa, não tinha mais a terra pra plantar, não tinha onde fazer as nossas ocas. Eu já com três filhos no braço, sem ter onde morar. E eu me lembrei que eu pescava aqui muito com o meu pai. Nós vinha pescar aqui o peixe, o camarão… Eu disse: “eu vou fazer uma casa pra mim na beira do rio e vou morar lá e lá vou criar meus filhos e ter o resto da minha família lá”. Fiz a casa, a choupaninha, trouxe os quatro filhos pra cá e nasceu o resto tudo aqui.

Hoje em dia, tenho oito filhos, 38 netos, 35 bisnetos e 16 tataranetos aqui nessa região da ponte do rio Ceará, no manguezal, na natureza, no ar frio, no ar fresco, onde o índio pode morar, ter seu fogo, ter seu pensamento, prestar atenção os astros, o que é que tem pra acontecer e o que é que não tem, né? E eu me sentia muito feliz. Não me sinto bem como antigamente porque criei meus filhos no manguezal, tirando da pesca, do caranguejo e do camarão, meus filhos também se criaram dentro deste manguezal pra sustentar a família. Hoje em dia, alguns já têm  um empreguinho. Mas nunca desprezamos o manguezal, porque aqui é a nossa vida, é a nossa mãe. É tudo pra nós. É a nossa ciência. E eu tenho desgosto de ver ele nessa situação. Era muito limpa a água. Você via o camarão e o peixe na areia. As indústrias, jogando muita imundície e muito lixo aqui pra dentro, esculhambou. Nós, liderança, já fomos a muitos órgãos pedir proteção pro rio Ceará. Mas, até agora, ainda não chegou a proteção que a gente pede.

DEFENSORIA: Quando a senhora chegou aqui, pajé, encontrou o quê?
PAJÉ RAIMUNDA: Nada. Não tinha nada. Só era o manguezal e o mar. Aí, fizemos as nossas barracas, aí vieram outros índios lá da Caucaia também, porque vieram tudo de lá pra cá. Lá do Corte pra morar aqui. Aí começamos a fazer as barraquinhas e aqui ficamos, na beira desse rio. Até hoje em dia estamos e não pretendo sair, a não ser que o termo de acordo dê certo de as nossas barracas serem feitas, nós vamos passar pro lado de lá da outra aldeia. Mas, a não ser, é daqui pro cemitério, porque aqui foi onde eu me senti mais tranquila, criei meus filhos melhor, em condição boa, não de estudo, mas de sobrevivência. Eles tiveram o que comer, onde morar. Foi muito bom.

DEFENSORIA: Foi muito bom, mas não significa que foi fácil, né, Pajé
PAJÉ RAIMUNDA: Não foi, não. Meu filho, não foi nada fácil. Logo no começo, quando comecei a ter minha família e ter os meus filhos, começou difícil porque eu não tinha onde morar. E eu me lembrava de tanta terra que nós tínhamos no município de Caucaia e eu não ter onde fazer uma barraca pra criar meus filhos, a solução foi a beira do rio pra morar. E, por isso, é que até hoje eu estou aqui: porque aqui a gente tem terra. Mas toda vida que precisava de tirar um olho de palha pra fazer o nosso cocá, pra fazer as nossas saias, pra tirar a bucha pra vender pra comprar alimento pra nós comer, porque a carnaubeira é a nossa vida, é a nossa mãe dentro da nossa mãe terra, mas nada disso era possível pra nós, como ainda não é. É difícil.

Eu sempre pedindo a Deus e a nosso Pai Tupã que alumie os caminhos de entrar um governo que demarque as nossas terras, porque até agora nada. Desde 1982. Eu já vi meu povo lutando pela terra e de 1982 pra cá, que comecei a caminhar junto com meus filhos, junto com o resto do povo, com os jovens e com as crianças lutando, porque nosso povo é de geração pra geração e a gente tem que seguir levando aquela cultura e aquela tradição a frente, passando pros filhos e pros netos, pra geração aprender a crescer dentro daquela cultura…

DEFENSORIA: Não ficou mais ninguém na Comunidade do Trilho?
PAJÉ: Ficou, ficou. Eu que saí com meu marido e minha mãe. Mas, na lagoa, tudo é minha família ainda. Depois que eu vim, meus primos vieram de lá pra cá. Os netos do Perna de Pau mora aqui pra esse lado. Esses índios que estão aqui vieram tudo de lá. E aqui formou-se essa geração porque a maioria nasceu aqui, na beira deste rio. Eu que nasci lá e saí de lá com 16 anos.

DEFENSORIA: Tem mais de 40 anos que a senhora está aqui. O que mudou aqui nesse tempo todo?
PAJÉ: Meu filho, mudou muita coisa. Na relação do rio mudou porque o pessoal passou a não ter respeito pelo rio, jogando tudo o que vinha das indústrias pra dentro do rio. Não vou dizer nem só os estrangeiros. A gente mesmo, morador mesmo, com a mente tão passada num sei pra onde de fazer uma trouxa de lixo e jogar pra dentro do rio. Não é só o povo de fora que suja o rio. A população também. Mas aí é porque inventam que não tem onde colocar o lixo e aí eu concordo que não tem. Mas a gente tem que fazer um esforço pra não ficar desse jeito.

O que mais mudou foi isso: do nosso rio ficar poluído. Porque aqui eles vão pegar um peixe e o camarão na Barra, lá onde passa aquela ponte. Eles vão buscar o alimento lá, porque aqui não tem. Isso aí tudo mudou. Isso aqui era bom. A gente tirava daqui o alimento. A gente dizia pra botar a água no fogo que já ia pegar o peixe. Era ligeiro subir com o peixe. Agora aqui? Você não pega um aratu [espécie de caranguejo], você não pega nada, porque não tem. Por causa da poluição.

Quando eu cheguei aqui, não tinha esse paredão. Todos os anos que chovia, nós se acordava com a casa pelo meio d’água e os meninos descendo de porta abaixo. Aí, o prefeito que já morreu fez esse paredão e as coisas melhoraram. Mudou a vivência da moradia. O prefeito ainda fez umas casinhas poucas, mas fez. Não mudou no total, mas muita coisa mudou. Mudou pra melhor, porque os meus filhos e netos nessa época era tudo analfabeto e hoje em dia nós temos uma escola indígena aqui dentro da comunidade. Alguns da minha família trabalham na escola indígena de zelador, alguns de professor lá por dentro e as coisas melhoraram mais.

O meu filho que é liderança, o Sérgio, os dois filhinhos dele nasceram aqui e se criaram. Ele criou os filhinhos dele aqui, dentro deste mangue, pegando caranguejo pra criar os filhos. E a mulher dele entrou pra ser agente de saúde indígena. Ela era agente de saúde da nossa comunidade, do nosso povo. E com o trabalho dela e com o ganho dele, criou os filhos dele. Botou os filhos na escola. Hoje em dia, todos os dois são vigias da escola indígena. Isso tudo é uma mudança que, pra nós, é uma melhora. Só em ele ter criado os filhos dele dentro do mangue e os dois estarem empregados, ganhando o salário deles lá, isso já é uma vantagem muito boa dada por Deus. A gente tem que agradecer todo dia o que a gente recebe, a graça que a gente recebe e a benção que a gente recebe. A gente tem que agradecer todo dia a Deus, desde a hora que se levanta até a hora que se deita.

DEFENSORIA: A luta por essa terra partiu da senhora?
RAIMUNDA: Sim. Mas não só de mim, como de cinco mulheres aqui de dentro dessa comunidade. Uma tá com Deus, que era minha cunhada. Deus já levou ela. A outra mora aqui, que é a sogra dele [Sérgio, o filho]. A minha filha também, que saiu com os filhos no meio do mundo também.

Nós levamos essa luta dos guerreiros de Caucaia à frente. Guerreiros de resistência, de coragem e confiança. Porque pra pessoa enfrentar uma luta dessa precisa ter coragem pra ir à frente. Se não tiver coragem, não enfrenta a luta. Porque eu enfrentei revólver, enfrentei Polícia, tudo aqui nessa beira de rio, nessa beira de pista. Enfrentei revólver do fazendeiro do Zé Gerardo [ex-prefeito de Caucaia] me botando pra correr de dentro da mata e eu ia em frente. Foi luta, minha filha. Foi muita luta.

DEFENSORIA: Em algum momento da pandemia a crença da medicina indígena entrou em conflito com o vírus?
RAIMUNDA: Quando surgiu essa doença aqui, todo mundo fechou porta, ficou trancado, não saiu de casa. Mas eu fui uma que nunca gostei de usar máscara. Ficar trancada também não. Se eu fui criada solta, na liberdade, como que ia ficar em casa. Eu conversava muito com eles pra gente ter fé em Deus porque se a gente não tiver de pegar essa doença, pode estar trancado ou aonde for, não pega. E, se for de pegar, pode se expor ou não, pega. E eu não tenho medo. Só tenho medo dos castigos de Deus e de mais ninguém. Tá com febre? Faz um chá de eucalipto, bota limão, bota pó de café, toma. Amanhece o dia, tá melhor. E a gente venceu isso. Venceu com nossa medicina. Eu fui uma que amanheci o dia tremendo, fiz um chá, bebi e sei lá pra onde que tinha ido febre! A minha filha dizia: “a mãe já tá velha e vai pegar”. Eu dizia: “minha filha, tem fé em Deus, que ninguém vai pegar coisa nenhuma.”


DEFENSORIA: E ninguém pegou?
RAIMUNDA: O marido dela ainda pegou, ainda ficou doente uns 15 dias, isolado. Mas isolar por que o pessoal? Se tinha medo de quê? Eu entrava, comia mais eles, não tinha medo de nada. Não tenho medo.

DEFENSORIA: A senhora disse que tudo aqui começou por causa de cinco mulheres. Cadê os homens deste território?
RAIMUNDA: Nessa época, aqui tinha pouco homem. Meu pai era meio frouxo, meio medroso. O cacique pegou uma canoa e passou pro lado de lá, porque não queria enfrentar. Dizia que era muita bala. Então, eu disse: vamo enfrentar. Se os homens não vão à luta, vão as mulheres. E nós fomos e vencemos. Deus deu tanta força e coragem que nós vencemos. Aí, quando viram que dom Aloísio tinha vindo pra ajudar e apoiar na luta da demarcação de terra, aí os homens começaram a aparecer. E eu disse: “negrada, vamo em frente. Os homens e mulheres juntos. Porque a gente é uma nação. A gente é um povo e tem que lutar junto pro que der e vier. Se der pra rir, dá pra rir. Se der pra chorar, dá pra chorar. Vamo à frente.”

Eu saía de casa de manhã com um café triste. Onde a gente chegava, comia uma banana, bebia um copo d’água e a gente ia de pés pras outras comunidades no meio do mundo, eu e essas cinco mulheres e algumas estão aqui pra não dizer que é minha mentira. Meus filhos se lembram dessa luta, dessa história dessas cinco mulheres que deram à vida mais de oito mil índios dentro do município de Caucaia. Deu uma vida, deu uma luz, paz e confiança também, porque eles não acreditavam mais em nada. E ainda mais: a um bocado de etnia de índio que tem no Ceará. Primeiramente foi Tremembé, Jenipapo-Kanindé e Pitaguary. Esses três povos se reuniram com o povo Tapeba lutando pelo mesmo direito porque viram a força do povo guerreiro Tapeba, o primeiro povo reconhecido do Estado do Ceará. Aí apareceu mais etnias. Uns dizendo que eram índios, mas não sabia dançar o toré. E eu dizia: “vamo em frente. Se você é índio, vá buscar o seu direito de que jeito for”. E lutamos juntos e taí, o Ceará com um bocado de etnia de índio lutando. Mas eu agradeço sempre a Deus a força e a luta dessas cinco mulheres guerreiras e do povo Tapeba, que é um povo guerreiro, um povo de fé, um povo garantido, que foi à luta e deu à vida um bocado de povos indígenas dentro do Estado do Ceará.

DEFENSORIA: Pajé, a senhora é muito conhecida pela medicina com a natureza. Como a senhora descobriu que tinha esse dom da cura, de lidar com o que a natureza oferece pra curar o nosso corpo?

RAIMUNDA: A minha mãe, ela era rezadeira. Ela trabalhava com espíritos de luz. Era do espiritismo ela, não era da umbanda. Era diferente. De invocar espírito, esse tipo de coisa. Nessa época, eu tinha 12 anos e comecei com umas dores de cabeça e umas coisas ruins, e ela disse assim: “olha, você não vai sair de casa só porque você não pode andar só”. Ela sabia. Ela tinha a oração de Nossa Senhora e sabia até a hora que a gente morria. Ela disse que eu não podia sair e eu comecei a perguntar o porquê e ela começou a perguntar se eu acreditava em umbanda. Eu dizia que não sabia nem o que era, porque eu não sabia mesmo. E ela disse que ia me levar num terreiro pra eu ver. E me levou. Quando chegamos lá, tava aquelas mulheres com aqueles vestidões, dançando e batendo os tambores. Me deu logo um arrepio, uma coisa ruim, como se fosse me arrochando por dentro. Eu pedi pra ir embora porque eu achava que ia morrer. E o medo que eu fiquei?

Foi quando disseram que tava na hora de eu procurar o dom que eu tinha na umbanda. Mas eu nem sabia o que era umbanda. Quando eu inteirei os 15 anos, de 15 pra 16, eu apaguei dentro de casa e, quando tornei, eu tava na beira da Lagoa do Pabussu com um monte de médium perto e minha mãe me disse que tinha chegado a minha vez de seguir a minha missão, o meu compromisso. Foi quando eu fui descobrindo e minha mãe me explicando que eu tinha que trabalhar com os encantados, eu tinha que curar as pessoas, que se precisasse eu tinha que estar pra curar se tivesse com espírito, com encosto ou com doença de bruxaria. Era muita coisa e eu não sabia o que fazer, mas ela me disse pra deixar o pensamento pra Deus, que ele ia me dar o dom. E eu botei o pensamento pra Deus e deixei aquilo rolar. De lá pra cá, fazendo cura nas pessoas que estavam precisando, rezando, fazendo as orações pra defender o meu povo de dentro da aldeia do que não prestasse. Porque eu não tenho que trabalhar só pra mim, mas também pelo meu povo, por você e por qualquer pessoa que está precisando.

Vem gente aqui pra mim rezar e pergunta quanto é. Eu digo que não rezo por pagamento. Deus andou pelo mundo curando, levantando alejado, dando visão a cego e nunca cobrou nada. Por que eu vou cobrar? É uma missão, um dom que eu tenho dado por Deus e essa missão, enquanto eu existir, eu vou levar comigo. De fazer a minha cura sem pedir nada em troca. Pedir só a Deus a proteção e a saúde de todos.

DEFENSORIA: A senhora disse que tinha medo quando começou. E hoje, ainda tem?
RAIMUNDA: Não, tenho não. Hoje em dia, eu tenho é prazer. E amor. Alegria de eu estar ali, pronta, firme pra quem precisar de mim e eu estar ali, pra curar de qualquer mal que for dado por Deus. Porque se Deus quiser, cura. Se Deus também não quiser, não cura. Porque depois que Deus diz “vai”, vai. Não tem doutor, não tem nada que dê jeito. Chegou o dia e a hora, se ele quiser levar, leva. Mas se for pra ficar bom com a água do pote, fica bom. E eu tenho prazer de curar o meu povo dentro da minha aldeia. Não só o meu povo, porque eu sou chamada pra todo canto. Vem gente de todo canto pra mim rezar, toda hora da noite que for. Eu tô ali, firme, pra fazer as minhas curas.

DEFENSORIA: Caucaia tem vários povos indígenas. Tem algo que é muito característico só do povo Tapeba?
RAIMUNDA: Tem. O modo de ser. Às vezes, tem uns que tem um modo de falar. Só o modo de você olhar você nota de longe. Mas ninguém é melhor do que ninguém e ninguém é diferente de ninguém. Porque nós somos todos seres humanos. E meu pai dizia: casou-se índio com alemão, com português, com japonês e nosso país é a geração dos povos indígenas.

Eu não posso dizer que você não é índia e nem ele é índio porque só eu sou. Não. Quem sabe que o sangue que corre aqui não corre na sua veia, na veia dele, na veia dele e na veia dele? No passado, o seu tataravô e o seu bisavô não era índio e você nunca soube? Isso aí é que a gente deve respeitar a decisão das pessoas. Se a pessoa chegar pra mim e disser “pajé, eu sou índia”, quem sou eu pra dizer que aquela pessoa não é índia? Eu tenho que acatar o que ela está dizendo e apoiar. Porque se ela está dizendo que é ela é. E a gente tem o dever de prestar atenção nas pessoas, índio ou não índio.

DEFENSORIA: A senhora já disse que não sai daqui enquanto a terra Tapeba não for demarcada. Por que é tão importante?
RAIMUNDA: Sabe por que que precisa? Porque, quando eu nasci, a terra era livre. Eu, com o meu povo, pescando, trabalhando na roça, na agricultura, só com aqueles penachos. Não era vestido, que nem eu estou agora. Era dentro da mata. A gente tinha aquela liberdade. Tinha o respeito. Se Deus me levar agora, eu acho que vou sofrer muito porque eu parti sem ver uma missão cumprida. A demarcação de terra é o que os povos indígenas mais precisam. Porque da terra o índio vai tirar o de comer, a moradia, a sobrevivência, a cultura, a história, a educação. Tudo é da terra. Sem a terra, a gente não pode ter uma moradia certa porque o fazendeiro chega e derruba. A gente sabe que a terra é da gente, mas o fazendeiro diz que é dele, chega e derruba. E aí, que alegria, que sossego que nós temos de criar nossa geração nessa arrumação? É importante não pra mim, pela idade que eu já tenho, mas pros meus filhos, meus netos e a minha família toda, que precisa dessa terra. Se a terra for demarcada hoje, Deus podia me levar, que eu ia feliz. Porque eu teria certeza de que o meu povo ia ficar dentro da sua terra pra tirar a sobrevivência e a alimentação. Mas, se não, pra mim, eu não vou feliz. Mas eu vou ver. Tenho fé em Deus que eu vou ver!

DEFENSORIA: Como foi pra senhora ser escolhida “mestra da cultura” do seu Estado em 2019?
RAIMUNDA: Eu me senti orgulhosa. Agradeço a Deus e aquele filho que tá ali [Sérgio]. Eu me sentia orgulhosa de ter a missão de ser filha de umbanda pra cuidar deles na saúde, na orientação e tudo. E fui ser a pajé do povo Tapeba. Eu já tinha orgulho de ter aquela missão de cuidar da medicina, da ciência e da cultura que eu tinha que passar pra eles, pra quando eles estiverem grandes saberem da história e da cultura dos antepassados. E fiquei mais orgulhosa ainda de ser mestra da cultura porque fui escolhida mesmo sem saber ler nem escrever. Porque ser mestra da cultura é um compromisso, uma responsabilidade de passar o que sabe, o que entende pra geração da comunidade e não ficar só pra gente.

Tenho orgulho disso e agradeço sempre a Deus porque isso aconteceu foi no tempo em que eu coloquei ele pra ser liderança e ele começou a andar no meio do mundo e chegou um dia e disse: “mãe, o cacique é mestre da cultura, o Luís Caboclo é mestre da cultura, a Pequena é mestra da cultura e por que a mãe não é?”. Eu disse que não sabia e ele disse que ia conseguir pra mim. Aí, andou, andou, andou e quando foi um dia ele disse que tinha saído um edital e ia ver se conseguia. Quando esse menino conseguiu, este menino ficou tão alegre. Eu nem sabia o que era e ele estava todo feliz. Eu agradeço a Deus, a quem ajeitou e à força dele [do filho], que hoje em dia eu sou uma mestra da cultura com todo o orgulho e tenho a missão de lutar junto com o meu povo.

DEFENSORIA: Quais foram as maiores dificuldades que vocês encontraram na luta por uma terra que já é de vocês?
RAIMUNDA: É exatamente a gente saber que a terra já era da gente e a gente não ter o direito nem de tirar o olho de palha pra fazer os artesanatos. Foi e ainda tá sendo difícil. De a gente conseguir ser reconhecido, ter sido o primeiro povo indígena reconhecido e nem com esse reconhecimento se consegue a demarcação de terra. A gente não tinha a capacidade de chegar em qualquer canto e fazer uma casa, ter um quintalzinho pra plantar… Era uma tristeza ver uma terra todinha dentro da mata e não poder brocar pra fazer um pedaço de chão pra plantar nem uma moradia pra se morar.

DEFENSORIA: Teve muita perseguição, pajé?
RAIMUNDA: Muita perseguição, meu filho. Era Polícia, era tudo no mundo botando a gente pra correr. E a gente correndo com as trouxas na cabeça. Muito difícil. Isso aí foi uma coisa terrível. Foi a coisa pior que eu passei na minha vida, de viver correndo com meus filhos pequenos sem ter onde morar.

DEFENSORIA: A senhora disse que enfrentou até revólver. Não teve medo de morrer, pajé?
RAIMUNDA: Tive não, meu filho. Uma coisa que eu não tenho medo é de morrer. Sinceramente. Os que dizem que têm medo de morrer são os que morrem primeiro. A gente não deve ter medo. A gente veio do mundo. Quem tem medo de morrer, não nasce. E quem tem medo de cagar, não come. Eu nasci porque não tenho medo de morrer. E como porque não tenho medo de cagar.

DEFENSORIA: Quando a senhora já disse que quando chegou aqui não tinha nada. Mas foi chegando a ponte, o asfalto, o carro, o homem branco foi avançando… Como se deu essa relação de vocês?

RAIMUNDA: Quando a gente veio pra cá, era mais eram os indígenas aqui. Então, até que não teve conflito. E as pessoas que chegavam eram amigas da gente, que aqui ou acolá apoiava a gente e a gente não ia deixar o pessoal na mão porque somos seres humanos e não somos melhor do que ninguém. Tinha que apoiar o povo. Porque se o nosso mundo é coberto de uma nação, vamo respeitar a nação. Não importa quem seja, não importa quem é nem daonde veio. Vamo respeitar. Por isso, o meu respeito por índio, negro, caboclo e todos os brasileiros. Eu considero você como meu irmão, mesmo que você não queira ser. Se você tem sangue ou não, nós todos somos irmãos. Meu respeito é por todo mundo. Não desrespeito ninguém.

DEFENSORIA: O que a senhora acha que o homem branco tem a aprender com o seu povo?
RAIMUNDA: O que eles têm que aprender com o meu povo é respeitar o jeito que eles são e a convivência deles pela terra. Porque todos os poderosos andam nas terras indígenas, mas se tivessem respeito pelos povos indígenas, a demarcação já tinha se resolvido. Podiam pensar “vamo respeitar os índios porque quando a gente chegou aqui eles já existiam e vamos dar força e trabalhar junto”. Mas não. O que sempre fizeram foi derrubar a nossa força e a demarcação da nossa terra. Nunca tiveram um respeito por nós.

Eles podiam aprender a respeitar a natureza. Ter respeito pela ciência. Pela cultura. Eles também têm uma cultura a zelar. Todos têm uma raiz, uma geração. Deviam ter respeito uns pelos outros.

DEFENSORIA: Muita gente diz que não existe mais índio hoje em dia porque os índios que têm usam celular, andam vestidos etc. Como a senhora responde a essas críticas?

RAIMUNDA: Eu respondo dizendo que eu não tenho celular. Nunca aprendi a usar, mas acho bonito ver um filho meu com celular. Porque Deus deixou a Terra pra todo mundo. A água lá do céu vem pra todo mundo beber. Não é só uma pessoa que bebe. Não é só aquela que está no alto. Essas pessoas que exibem porque têm um celular e o outro não tem, vamo respeitar. Porque o outro amanhã pode ter e eu, que estou hoje cheio de coisa, posso amanhã não ter. Aquele pode subir e crescer e eu posso descer. A gente tem que respeitar a ciência, a natureza, a convivência com as pessoas. Tem que saber entrar e saber sair, pra gente ter vez e voz no nosso país.

DEFENSORIA: A senhora já está com 78 anos. Acha que chega nos 100, pajé? E o que a senhora aprendeu até aqui?
RAIMUNDA: O que a vida me ensinou até agora foi tudo. Porque só de estar aqui depois de sofrer muito e lutar muito, porque fui pai e mãe pros meus filhos. Criei meus filhos sozinha e Deus. O cacique me deixou por outra e eu continuei em frente com os meus filhos. Só em eu criar meus filhos, Deus me deu muito na minha vida. Me deu paz, me deu força, me deu coragem pra lutar e criar meus filhos. Me deu tudo na vida. Uma ruma de neto que eu tenho, bisneto, tataraneto. É uma bênção dada por Deus e eu só tenho a agradecer. Tenho fé em Deus passar dos 80 e caminhar mais pra frente. Se Deus me permitir, posso passar até de 100. Quem sabe eu não vou no caminho do meu tio, que viveu até 108 anos? Quem sabe? Pra Deus, nada é impossível. Eu não tenho pressão alta, não tenho diabetes, não tenho nada. Só um problema na minha vista e cigarro, que eu fumava demais e tava me dando um cansaço. É meio ruim, mas já tá com quase um mês que não boto cigarro na boca. Vou tentar, meu filho, que pra frente é que se anda. Vou tentar ver se eu esqueço esse cigarro de mão.

DEFENSORIA: Pajé, que chá é esse que lhe deixa desse jeito?
RAIMUNDA: Meu filho, chá nenhum. Só quando eu tô doente eu tomo um chazim de eucalipto. Aí, eu faço uma gemada e bebo. Um mastruz com leite. Isso aí é o que me conserva. Porque o que eu tiver de ruim o mastruz com leite vai tirando. Pra mim, tá tudo bem. Eu subo em escada, subo em tudo. Não tenho nada, nada. Era só este cansaço, mas graças a Deus este cansaço está indo embora. Eu acho que vou aturar muito mais do que eu imagino e espero. Mas quem sabe?

DEFENSORIA: O que a senhora acha dos espaços que as mulheres têm conquistado cada vez mais? Quarenta anos atrás, quando a senhora veio pra cá, mulher não tinha tanto espaço quanto tem hoje. Não tinha deputada, não tinha vereadora, nada. Hoje, a gente já vê lideranças como a senhora.

RAIMUNDA: Eu vejo com muito orgulho e respeito. Porque mulheres são guerreiras. São tão guerreiras que um grupo de mulher subiu uma geração do povo Tapeba e de outros índios. São guerreiras mesmo. Passa fome. Dorme no chão, se for preciso. E eu espero que daqui pra frente possam ser mais deputadas e mais presidentas. Porque não temos pro nosso povo uma deputada. Mas quem sabe se não acontece um dia? É o que eu espero.

DEFENSORIA: Como foram esses últimos anos pra vocês, povos indígenas?
RAIMUNDA: Meu irmão, esse Bolsonaro é uma praga! Isso é uma desgraça do inferno! Este homem veio mandado num sei daonde! Porque tudo mudou de ruim. Nada de bom. Nada foi fácil pros povos indígenas. Peguei uma reportagem dele com ele chamando as mulheres de vagabundas. Como um homem desse quer ser presidente chamando as mulheres de vagabundas? A mãe dele não é mulher não? Isso é papel pra uma pessoa que quer comandar um país? Cadê o respeito pelo povo? Só por isso eu tomei um nojo e um ódio deste homem.

Ficou tudo difícil, meu filho. Tudo o que a gente comprava mais barato subiu. Ficou difícil. Muita gente ficou desempregado, ficou sem nada. Algum agrado que tinha foi tirado. Eu posso desejar coisa boa pra um homem desse?

Ele disse que o índio ia comer capim. Que não tinha terra demarcada pra índio. Isso ficou muito ciente na fala dele e ficou muito marcado na minha cabeça.