“Naquele tempo, a mulher não era nada. Na minha casa, porém, o mulherio era grande. E isso me influenciou muito. Eu sempre fui obediente, mas obediência não significa submissão. Aprendi a ser política nos movimentos sociais.”
O lugar onde Nildes Alencar mora faz jus ao que a gente imagina ser a casa de uma professora. Muitos livros e jornais povoam os cômodos. E você é imediatamente transportado para outros mundos quando ela fala da infância em Lavras da Mangabeira, da viagem de trem rumo a Fortaleza, das leituras favoritas, dos alunos traquinas, do tesouro da família ser a máquina de costura, dos afetos entre irmãs…
Ela revive tudo isso numa cadeira daquelas típicas de vó. Blusa florida, calça preta e chinelo, Nildes conversa com a equipe da Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública (DPCE) no apartamento no qual vive com o companheiro, a neta e a companheira da neta no bairro Meireles, em Fortaleza. Ali, onde o mar é emoldurado por uma grande janela, ela vê o horizonte de uma praia que testemunhou se transformar no correr do tempo.
Nildes abre a porta e desatina a falar. Tem uma memória afiada, guardada sob um cabelo de neve e cujo acesso se dá pelos olhos de água, verdes claros, que ela carrega em si. A pele, alva, conversa com uma voz mansa. Quando ela fala, a gente se sente num afago. Na mesinha de centro, o livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire, observa tudo.
A sala espaçosa é preenchida por móveis antigos, a começar por um chapeleiro logo na entrada e no qual estão penduradas máscaras, o adereço do “novo normal” imposto pela Covid-19. Onze quadros enfeitam as paredes. E uma honradez toma o peito da professora quando entra no quarto transformado em biblioteca. “Uma coisa que me orgulho é de ter lido todos”, admite, enquanto apanha o caderninho de anotações da capa rosa com o qual vai permanecer toda a entrevista.
A imensidão de Nildes enquanto alguém que desafiou a Ditadura Militar, um tempo no qual “a mulher não era nada”, cabe num corpo miúdo e franzino, tão magro quanto a letra desenhada por ela no caderno. Aos 89, a professora ainda rabisca sem óculos. Tem um punho seguro, de pele arrugada, que versa sobre ser pobre, “mas uma pobreza com dignidade”. Porque foi essa a tônica de parte importante da vida.
Mesmo sendo irmã de quem é, um frei cujo nome é marco de resistência, a educadora fala por si. É Nildes, e não apenas “a irmã do Tito de Alencar”. Defende a educação como a mais preciosa herança e, por isso, não desiste nem dos alunos mais danados. São eles, aliás, os preferidos, ela admite. “Ninguém sabe que fracasso está dentro de cada pessoa”, ensina. E completa: “eu sou responsável pela humanidade que estou vivendo.”
Nas mais de duas horas de entrevista, a mulher que se edificou em palavras e pelos ensinamentos revisitou até episódios desconhecidos dos entrevistadores – jovens demais para terem ciência de bastidores da vida de décadas atrás, mas salvos pelo fotógrafo ZeRosa Filho. Foi ele quem arrancou de Nildes relatos hilários sobre uma suposta sapatada que ela teria dado em um vereador de Fortaleza no calor de uma discussão na Câmara Municipal.
Câmeras desligadas, ela posa para um retrato com Bionor. Presente de ZeRosa. Ao lado do marido, Nildes primeiro fica empertigada. Mas solta-se no terceiro clique. Gargalha com as provocações do fotógrafo. Dias depois, ao receber do repórter a foto pelo WhatsApp, responde: “estamos lindos e prontos para completar a estrada. Sei que os nossos passos vão deixar pegadas. Penso que neste restante final devemos deixar nosso recado. O meu será no sentido de firmeza e perseverança que expresso nesta frase de angústia de um dos nossos papas católicos: ‘eu tenho medo do cansaço dos bons’.”
Confira a entrevista.
NILDES: Obrigada pela oportunidade que a gente tem na vida de expor as experiências e elas ficarem como memórias. Isso vale. Afinal, nós precisamos dar testemunho do que foi bom, do que foi ruim, de como se superou tudo isso. É importante pra nós.
Antes de tudo, quero dizer da minha origem. Eu sou sertaneja, de alma e de nascimento. Nasci em Lavras da Mangabeira, no sul do Estado. Pertenço a famílias tradicionais, tanto por parte de pai quanto de mãe, num tempo em que não era o dinheiro só que comandava o valor das famílias mas a sua dignidade, seu nome, sua história. Nascendo em Lavras, eu tenho orgulho grande de dizer que sou sertaneja pura, porque nasci nos matos. No Sítio Cajueiro, herdado dos meus avós maternos. Não teve quem me ajudasse a nascer, a não ser minha própria mãe. Nós nos esforçamos. E acho que isso tem um significado muito forte pra minha vida e no relacionamento que tive com a minha mãe. Eu me projetava muito nela e ela se projetava muito em mim.
Ao nascermos em Lavras, houve algo que não deu pra família continuar. Aí, começa a luta grande da questão da mulher, que já começa aí, no início da minha vida. Meu pai saiu de Lavras porque uma das minhas irmãs era professora nos sítios e era assediada. Mas cidade pequena e o dono do sítio cortejava a minha irmã. Isso, naquelas épocas, em 1930, era um escândalo. Meu pai foi alertado que tivesse cuidado com minha irmã. E isso foi o que fez meu pai sair de Lavras só com minha irmã. Veio para Fortaleza, para que não houvesse prejuízos para minha irmã, que tinha de 17 pra 18 anos. Foi um sofrimento muito forte pro meu pai e uma arrancada muito brusca. Mas a gente vê a questão da mulher já prejudicando uma família por causa do nome de algo que sequer chegou a acontecer.
Meu pai veio com minha irmã e depois de três meses, quando se organizou, começamos a nossa história aqui em Fortaleza. Eram oito filhos. Passamos o ano novo em Senador Pompeu. Chegamos em Fortaleza e meu pai conseguiu emprego numa empresa de passageiros. Ele passou a administrar essa empresa de ônibus. E foi uma luta muito grande pra ele sustentar a família com as dificuldades encontradas aqui.
Eram sete mulheres, eu pequena ainda, e as cinco maiores foram os braços direito e esquerdo do meu pai. Tinha um irmão de 14 anos que ajudava muito, mas foram elas, as mulheres, que fizeram a força briosa do meu pai para enfrentar as dificuldades na cidade de Fortaleza, que não eram pequenas. Eram grandes, muito grandes. Daí, eu já comecei a ver, e isso influenciou muito a formação de todos nós, como a nossa casa não era uma família machista. Era muito mais o domínio. O meu pai, todas as decisões dele eram com a minha irmã, essa dita cuja que era professora no sítio lá em Lavras. Minhas irmãs eram muito companheiras e amigas do meu pai. A minha mãe era uma pessoa linda, maravilhosa, mas era muito protegida pelo meu pai.
Foi nesse contexto familiar que foram se construindo os conceitos e a própria formação humana. E eu sempre digo que era uma riqueza, e continua sendo, porque era como ter uma universidade dentro de casa. Porque cada um foi crescendo e trazendo suas experiências de vida, mesmo a questão da escolaridade não tendo sido fácil. Os mais velhos não tiveram a escolaridade, só tiveram até o quinto ano primário, porque foram ajudar financeiramente o meu pai nessa luta toda.
Crescemos e os pequenos eram mantidos pelos mais velhos. Então, eu não tive uma mãe. Eu tive quatro mães. Porque era todo um cuidado com a nossa formação, os nossos estudos, ter o que vestir, o que calçar… Mas fomos uma família muito pobre. Não vimos facilidade nenhuma na família. Pobreza, mas uma pobreza com dignidade. Foi aí que eu fui aprendendo e conceituando que a pobreza não torna o ser humano indigno. O que torna indigno é, na pobreza, ele não ter nenhuma oportunidade de educação, que era o sonho do meu pai, que foi moço rico mas não serviu de nada pra nós, nem pra ele. Ele disse que iria deixar pra gente, filhos dele, educação. Aí, todos vão casando, vão se construindo, a família vai crescendo, a árvore fica imensa…
DEFENSORIA: Como que a educação virou uma paixão pra senhora?
NILDES: Por incrível que pareça, todas as minhas irmãs mais velhas foram professoras. Leigas; professoras dos sítios. E eu admirava, sobretudo a minha irmã um pouco mais velha que eu. Eu achava lindo ela voltar da escola com aquele livro grande, que era o livro de chamadas e mais tarde foi homenageado com o título do primeiro programa do magistério das professoras do estado do Ceará, recebeu o nome de “O livro da professora”, porque toda professora ia pra escola com este livro, que era o diário de classe. Ela vinha com este livrão e rodeada de crianças. Ela, muito bonita, bem novinha, e eu achava lindo aquilo ali. O que eu ouvia e via lá em casa era elas falarem de escola e de aluno.
Meu pai não falava nada sobre a gente ser professora, isso ou aquilo. O que ele falava era de educação, que tinha que ter educação, de se formar, todas nós. Então, eu, encantada com essa situação, talvez, talvez não, com certeza isso me impulsionou para fazer o curso ginasial e, depois, fazer o curso normal. O outro motivo também: eu sonhava ser uma mulher intelectual. Achava o nome bonito. Não sabia nem o que era direito ser intelectual, mas quando pequena lia muito livro de história e romances. Tudo emprestado, porque a gente não tinha dinheiro para comprar livros. Li muito romance! Então, a literatura juvenil, poesias e tudo, entravam muitos desses livros em minha casa através dessas minhas irmãs, que gostavam muito de ler. E com essas leituras e vendo o exemplo e a vinda dessa minha irmã pra casa, isso me encantava.
A gente também brincava muito de escola. Nunca era professora, porque era muito novinha. As mais velhas, elas que eram professoras. E eu sonhava que eu chegaria a ser professora um dia. Faço o vestibular para o curso normal. Tive excelentes professores, mas nenhum me deu iniciativa para o Magistério. Eu era que me encantava com minha irmã e ela me pedia ajuda pra corrigir o caderno dos meninos, dos alunos dela. Ela era muito cuidadosa. Ela era muito jeitosa.
Mas o que me gerou na alma essa vontade de achar o Magistério bonito foi um filme que eu assisti. “Alma forte”, sobre um professor que ensinava num sítio. Eu achei linda a atuação daquele homem cuidando daqueles alunos. Me encantou profundamente. Eu achei que se eu fosse professora eu queria fazer aquilo que ele fazia. Este filme marcou a minha vida em relação a essa sede e acreditar. O aluno, quanto mais danado, mais eu gostava.
DEFENSORA: Quando a senhora olha pra trás, pra sua trajetória, e vê o que fez, acha que conseguiu fazer aquilo que o professor do filme fazia?
NILDES: Consegui. Consegui muita coisa. E consegui não só com os alunos, mas com as professoras. Porque a minha primeira experiência do Magistério foi muito ruim. Foi péssima. Então, eu senti que, quando a gente começa, a gente começa do zero. Por mais que você tenha uma teoria. Por mais que o professor seja bom nas disciplinas do curso. Não há nada como a vivência.
Eu sofri muito no meu primeiro ano de Magistério. Eu não tinha experiência, não tinha aula experimental pra gente se testar. O laboratório era a própria sala de aula e a gente sofria com os meninos, os meninos sofriam com a gente. Mas eu achava assim: “eu hei de acertar; alguma coisa tem de dar certo”. E a gente ia acertando mesmo, porque uma mãe chegava e dizia: “meu filho está aprendendo com você”. Aquilo era uma avaliação, né? Isso foi me dando força e coragem. E eu comecei a conviver com as pessoas que eram realmente Professoras, com letra maiúscula, que eu admirava profundamente.
Uma professora que me deixou marcas profundas, Luíza Teodoro, uma grande educadora. Ela já faleceu, mas era quem coordenava as reuniões na escola. Meu magistério se fez no Colégio Christus. Ali foi a minha universidade. Ali foi onde elaborei todas as teorias da minha carreira profissional. Aprendi muito ali. E dali fui me fazendo, me construí. E outra coisa importante, que a gente pensa que não, é que o próprio grupo de professores dá continuidade à construção do profissional. Não se pensava nisso na época. Ou não tinha nada organizado pra isso. Hoje já tem: formação continuada. É uma disciplina na prática do Magistério. Toda escola que se preza cuida da formação continuada do professor. Se ele tiver vocação, a gente consegue caminhar com ele, subir com ele.
DEFENSORIA: A senhora disse que conheceu uma pobreza com dignidade. Existe uma escritora brasileira que foi invisibilizada durante muito tempo, chamada Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, que diz que “a fome é professora”. Nessa pobreza, a senhora teve de lidar com a fome em algum momento, seja como a Nildes criança e adolescente?
NILDES: Não. Na minha casa, não era a fome que nos assombrava. Porque tudo o que se ganhava era pra comida. Meu pai era um homem que vinha de farturas e a preocupação dele era o alimento da casa. Na minha casa não tinha cadeira. Minha casa não tinha móvel. Só tínhamos três malas e uma máquina Singer. O que assombrava a gente era não ter pra onde ir porque o aluguel da casa atrasava um mês, dois meses, três meses, e o dono da casa mandava cobrar o aluguel e o meu pai dizia: “nós vamos pra rua”. Minhas irmãs pararam os estudos, todas elas, e foram ajudar o meu pai no comércio, na Praça do Ferreira.
Havia essa luta pelo alimento e a casa atrasada, com a gente com medo de ele mandar a gente embora. O que a gente fazia: empenhava a máquina de costura. Era a jóia, o tesouro que se possuía. Era o patrimônio da família. E ela ia pro penhor. Com a penhora, dava pra pagar os três meses de aluguel atrasado. Só que, ao terminar, tinha que tirar a máquina da penhora. Aí, o meu pai dizia assim: “a máquina tá pendurada”. E eu pensava que ela tava pendurada num armador. Coisa de criança, né? Mas as minhas irmãs lutavam, lutavam, lutavam, conseguiam juntar e tiravam a máquina da penhora. Passava um tempo e novamente a luta era essa.
Não tinha nada em nossa casa em termos de móveis. E a gente, os pequenos, calçava um tamanco que se usava na época, que era de madeira com um pedaço de couro pregado nos cantos com prego. Era com esse tamanquinho que a gente ia pra aula. A escola dava fardinha e dava a merenda. A merenda eram três roscas. Três roscas. Muitas vezes, eu juntava, comia só uma e trazia as duas pra dar aos meninos. Mas alimento, de comida mesmo, toda vida foi a preocupação do meu pai.
Mas nunca tive livro. Nem lápis. Tinha o lápis que a escola dava. Era o cotoquinho de lápis. Caderno, a minha mãe pegava o papel do pão, o papel de embrulho, costurava e aquilo ali era o caderninho que eu e minhas irmãs usávamos. Não era fácil. Era difícil. Mas fome, não. A gente se aguentava bem. O arroz, o feijão e a carne nunca faltaram. Não tinha verdura. Mas tinha o leite dos pequenos.
DEFENSORIA: E como professora, a senhora teve de lidar com aluno que passava fome?
NILDES: Não, não tive. Porque eu comecei ensinando em escola particular e os alunos vinham de uma classe média. E na escola pública, não. Agora, assim, na Escolinha Sol [projeto social que mantém em Fortaleza], algumas crianças, não são muitas, elas começam sem interesse na leitura, querem passar mal e a gente descobre que elas não tomaram cafezinho, não comeram pão em casa…
Hoje, essa questão da fome na escola já está melhor porque tem a merenda escolar. A merenda escolar foi a maior revolução que aconteceu na educação. Porque as crianças não aprendiam porque não comiam. Quando eu cheguei, estava no quente da luta pela merenda escolar. Isso foi já na década de 1960. Foi a Ditadura não. Foi antes dela que começou. Quando as universidades passaram a refletir de uma maneira mais científica sobre o analfabetismo no Brasil é que se toma consciência de que era a fome. Era a fome. E, então, fazer o quê? Alimentar as crianças na escola. Aí, começou a luta por isso aí. Não foi uma coisa tão simples e foi uma revolução, porque não tinha. As crianças não aprendiam a ler porque estavam com fome. Uma criança com fome não dá, né. Primeiro porque a fome corrói. E dói.
Isso aí foi uma caminhada. Métodos e processos na educação se dão bem quando a criança está bem cuidada. Quando ela está bem alimentada. Quando ela tem condições. Hoje, a escola, pelo menos é o que está previsto, tem que saber quais crianças têm pais desempregados e saber se a alimentação está adequada. A primeira obrigação da escola é ver a realidade da criança. Toda escola que se preza, uma boa equipe de educadores vai saber da realidade da criança para, daí, iniciar o seu processo.
DEFENSORIA: Lá em 1968, a senhora fundou o Instituto Educacional De Alencar. Como foi esse marco na sua trajetória como professora? O que ele lhe fez lembrar? Que projetos a senhora ainda quer com ele?
NILDES: A fundação da escolinha veio pelo fracasso grande na fundação de uma outra escola. Eu pensava em fazer uma escolinha simples, sem pretensão, pra ter meus alunos e um dinheirinho pra me manter. A minha ideologia não passava disso. A primeira escola fundada foi ao lado de uma irmã minha que era bem casada, tinha terrenos e se propôs a construir a escola. Aí, uma amiga e eu resolvemos fazer uma sociedade com meu cunhado e iniciar uma escola, que se chamou Instituto Educacional João XXIII, na avenida Antônio Sales.
Foi uma revolução, porque a escola se propunha a ser uma escola mais moderna no sentido de dar uma diretriz pra formação humana dos meninos. Por quê? Porque nós, eu e essa amiga, éramos de ação católica, da Juventude Estudantil Católica, que já tinha uma visão do ser humano muito grande, numa linha de humanização, de solidariedade, de amor, de responsabilidade, de compromisso… E, depois, vinha a parte cívica, da pátria, do cidadão, de lutar pelo povo… A gente começou assim. Quando estávamos no quarto ano de funcionamento, a escola foi muito bem aceita e por circunstâncias que não foram planejadas vinham pais com crianças especiais que não estavam sendo aceitas pelas escolas comuns particulares. Então, a gente, por compaixão, e não posso dizer que foi um pensamento técnico, elaborado, pensado, planejado, não… A gente, vendo o sofrimento daquele pai e daquela mãe, resolvemos acolher a criança.
Outros pais souberam e você sabe que isso tem uma repercussão imensa. Espalhou-se que “escreveu, não leu, manda pra Nildes que ela recebe”. Muito bem. Isso criou uma cumplicidade nossa com os pais que tinham filhos com dificuldades. Então, nós passamos a ver que era possível a gente educar as crianças com deficiência das outras que tinham facilidade pro aprendizado. Elas estariam juntas. A gente faria uma recomposição dos conteúdos e trabalhava o máximo. E isso foi dando certo. Como foi dando certo, a gente passou a entender que a criança tinha direitos. Que ela tinha direito de aprender porque ela tinha potencial. Ela não ia aprender igual ao outro, mas ia aprender o que era possível e necessário pra ela também. Isso nos deu uma força muito grande. Não tínhamos um projeto pra isso não. Foi algo que foi se construindo com essa publicidade que a gente tinha, da mãe sofrida e do pai que chorava, muitas vezes, pro filho ter o direito de estar dentro da escola.
A experiência de sociedade com o meu cunhado não deu certo porque eu pensava a escola como educadora. Mas eu não sabia nem que era educadora. Eu estava sendo, mas não sabia. Eu era a professora. Me sentia mais professora do que educadora. Não tinha faculdade ainda. Tinha só o curso normal. Mas tinha essa intuição e essa inclinação pra história daquele filme que eu assisti e que era possível. Saí do João XXIII. Não deu certo. Tinha envolvimento com a família e ia criar problemas seríssimos, como de fato criou. E eu pensei: “eu quero é a escolinha que eu pensava, numa casa pequena, com poucos alunos e que eu possa dar conta”. Só que quando saí um grupo de pais me acompanhou. Pais que tinham filhos com dificuldades e não queriam entregar nas mãos de qualquer um. Então, começo a escolinha, que recebeu o nome da minha mãe. Os pais quem escolheram este nome para prestigiar a minha pessoa dando o nome da minha mãe, porque a minha mãe era linda e uma educadora nata.
Era uma casa pequena, com 45 alunos. Só que esses meninos nos deram força para gente manter contato com psiquiatras, psicólogos, neurologistas… E eles, por dedicação, por amizade, nos deram uma ajuda imensa no trabalho com as crianças, pra gente saber o que acontecia com a parte cognitiva da criança. Iam pra escola dar palestras, orientar professores e atender os meninos. Fortaleza tinha poucos psicólogos nessa época. Construindo, a gente foi abrindo os olhos pra isso.
A escolinha foi em 1968, mas em 1964 rompem com a nossa liberdade. Entra a Ditadura Militar. O que aconteceu: tiraram de circulação todos os livros que tinham sido produzidos pelos técnicos pedagogos da Secretaria de Educação do Estado. No “livro da professora”, você já percebe uma linha de conscientização e de como dirigir a educação; uma libertação do atrelamento dos conteúdos de ensino do Ceará com o Sul ou com os Estados Unidos, porque não tínhamos um conteúdo próprio, específico, e os meninos estudavam a cidade de Belo Horizonte, por exemplo, e sobre o nosso estado eles não tinham lido. Então, isso aí tinha sido uma libertação porque o estado passou a ter os seus livros publicados pela própria Secretaria de Educação, e isso foi proibido. Foi tudo trancafiado.
Eu, inocentemente, achei que era um absurdo pegar um horror de livro e trancar numa sala, pedi uma porção de livros e levei pra escola. Arriscado até a ser presa por causa disso. Mas me deram os livros e eu levei pra escola. Adotei todos na escola. Imagina só! Olha o destempero da coisa. Coragem não foi, porque eu nem sabia. Eu estava ingenuamente achando que ia levar pros meninos. Então, adotei. E o “livro da professora” é uma riqueza!
Isso deu um arranco à escola, que passou a ser vista como uma escola diferente. Não tinha propaganda, não tinha nada. Mas qual é o pai que não quer ver seu filho sendo trabalhado, sendo recuperado, sendo visto? Tudo o que a gente podia fazer ali dentro a gente fazia. E os pais foram nossos cúmplices nessa passagem. Porque passamos a Ditadura todinha e eu não sofri nada. Até hoje, eu não sei dizer o porquê. Só sei que a gente trabalhou com isso e foi isso que deu nome à escola e eu apareço.
O nome foi pegando, o nome foi pegando, o nome foi pegando… E eu sonhava em ir pra faculdade. Mas eu trabalhava e não existia faculdade à noite porque nossas faculdades eram elitistas.
DEFENSORIA: Como era ser mulher e professora durante a Ditadura?
NILDES: O salário da professora era o mais miserável que você pudesse imaginar no mundo. Eu entrei no movimento Juventude Estudantil Católica, depois no Juventude Independente Católica e sempre discutíamos quais as necessidades da mulher. Uma série de coisas que não era fantasia nem vaidade. Como ela iria comprar um livro pra acompanhar o trabalho dela, pra ela crescer, pra ela estudar etc? Como a professora chegaria a isso? Nada. Então, fomos lutar por salário!
A literatura, o cinema e a cultura tinham um papel importantíssimo para despertar na mulher a importância que ela tinha de ser mulher. Porque a mulher não era nada não. Na ajuda da família, ela estava valendo. Mas, para contribuir com a sociedade, ela não significava nada.
Quando que eu descubro que a mulher tem um papel importante na sociedade? Ao entender que a Igreja tentou muito valorizar a mulher na pessoa de Maria, a mãe de Jesus. Além disso, o movimento feminino, que podia até ser distante da gente, mas foi também processual. Na minha casa, o mulherio era grande. Então, contribuiu muito na minha formação. Quando as mulheres começaram a conviver mais na adolescência com grupos, abriram mais os horizontes. Mas o que tomou esse impulso grande foi depois dos Beatles pra cá. Eles deram uma contribuição muito grande porque as mulheres começaram a se libertar de uma maneira estranha: se jogando, tirando a roupa, jogando o sutiã fora, fazendo aquilo e aquilo outro. Mas valeu. Eu acho.
DEFENSORIA: A senhora sofreu alguma intercorrência da Ditadura na hora de ensinar?
NILDES: Não, nunca tive. E isso é uma coisa muito interessante. Eu fico pensando: terá sido porque boa parte dos alunos pertencia à cúpula e eles se sentiam gratos pelo trabalho com os filhos. Não sei. Não sei.
Eu sempre fui uma pessoa obediente. Mas obediência não quer dizer submissão. Eu achava assim: se eu estava na Ditadura, eu não ia provocar. Pensava que tinha que ter uma forma de lutar, mas não ia provocar porque não queria ser presa. E eu não queria também que meu irmão fizesse pra ele não ser preso. Mas, se você não reagisse, também não ia sair dali.
Só uma vez eu fui chamada para ser inquirida porque um pai de um dos meus alunos era do SNI e eu não sabia. A gente fazia campanhas pra arrecadar dinheiro pra ajudar na excursão dos meninos no Juazeiro e no Crato, e não podia fazer isso, a não ser se você sinalizasse um “entre amigos”. Fui chamada porque a escola tinha feito uma quermesse e cobrou entrada. Mas eu disse que era tudo combinado, discutido e decidido com os pais. Era aceito por eles e eles davam a contribuição porque queriam. Então, eu prestei meu depoimento e deu tudo certo.
No mais, os livros que foram adotados: nunca fui chamada pra responder por aquilo. Se eu dissesse que sim, estaria mentindo. Nunca fui. Aí, eu me pergunto o porquê. A gente também não era burra, né? A gente sabia fazer as coisas pra estar dentro dos critérios e das mensagens dos nossos símbolos e patrimônio cultural. E a nossa escola era vizinho à Justiça Federal. Mas eu também nunca desafiei. Porque eu sabia que não ia ter força. E nem tinha coragem pra isso. Nesse ponto, eu não vou dizer que sou corajosa não. Eu sou medrosa.
DEFENSORIA: A senhora nunca recebeu alerta de que estaria sendo seguida e observada?
NILDES: Recebi. Recebi do Roberto Carvalho Rocha [educador e empresário do Colégio Christus, falecido em 2017 ] quando eu voltei da França. Eu voltava do Tito, que eu tinha ido visitar. Ele estava banido lá. Aí, ele disse: “tenha cuidado que você está sendo seguida.”
Na Anistia, eu fui escolhida para ser a presidenta do Movimento Feminino pela Anistia. Imagina, presidenta de movimento!? Me comparar com Maria Luíza [Fontenele, ativista e ex-prefeita de Fortaleza], com Rosa [da Fonseca, ativista e ex-vereadora de Fortaleza]…? O que eu era? A professora da escola que era vista como a professora-educadora. Mas, politicamente, zero. E a dona Therezinha Zerbini [presidente nacional do movimento, falecida em 2015] disse: “ela deve ficar porque ela tem um irmão e é conceituada na cidade, é respeitada, e ela sendo a presidenta o movimento não será perseguido.”
Eu era respeitada porque não tinha nenhum deslize meu. E olhe que eu nunca fui a favor da Ditadura. Nunca fui. Eu entro no Movimento Feminino pela Anistia como presidente. E fiquei até o final. Era por minha competência e capacidade? Não. Era exatamente por minha pessoa ser bem vista pelo serviço secreto e pela Ditadura, e eles não mexerem comigo. Agora, eu ia pra casa eu e o Bionor, que era meu companheiro e quando namorava comigo ia lá pra casa, e o carro, um Wolks, era seguido pela Polícia Federal. Aquilo é horrível. Dá um incômodo. Dá um mal-estar.
Eu tive medo que me prendessem. Mas iam me prender por quê? Primeiro, a Anistia é um estatuto de direito internacional. É um direito que você tem de pedir anistia. Então, nós estávamos apoiadas na lei e na lei internacional. Segundo, toda reunião tinha ata e a gente tinha um cuidado pra não deslizar em nada e não prejudicar a caminhada do movimento. Terceiro, porque mulheres eram vistas como “sexo frágil”. Então, nos aproveitamos disso. Pra que coisa melhor no mundo do que eu lhe anarquizar e você não bater em mim por eu ser sexo frágil? Aí, eu ganho você na história. Não é verdade?
Como a mulher é tida como sexo frágil, eles não vão fragilizar por nada e qualquer coisa. Eles não são tão burros assim. A anistia começou em 1969 e já tinham uns aninhos de experiência tanto eles quanto os que eram contrários à Ditadura. Então, dava pra gente conviver. O movimento da anistia era respeitado. A gente aproveitou a feminilidade. Ser feminina é um valor, na verdade. A mulher não é burra. Ela é inteligente. Ela é capaz de, organizadamente, administrar e lutar por grandes ideias. Ela é capaz disso. Tirar o mito de sexo frágil. Podemos ser no físico. Mas, no intelectual, não. E, assim, conseguimos fazer a passagem até as aberturas políticas. Porque chegou um momento em que ficou mais aberto e você já criticava.
DEFENSORIA: Nesse processo todo, o que o movimento social lhe ensinou?
NILDES: A primeira coisa que eu não entendia porque nas reuniões todo mundo pensava diferente. Eu não conhecia nenhum movimento político e achava tudo aquilo uma bagunça. Tinha um grupo Aliança Libertadora, tinha outro que era Partido Comunista…e eu não sabia onde eu estava metida. Eu estava ali por causa do meu irmão. Depois foi que, politicamente, eu fui tomando consciência da importância que era a luta contra a Ditadura e a favor da abertura política. Eu aprendi a ser política naquele momento. Naquelas reuniões, naquela mesa, naquela escola, na rua José Lourenço, 1660. Sinceramente.
Eu era uma analfabeta politicamente falando, embora na minha casa se discutisse a política, a questão dos direitos do homem, do emprego, das dificuldades do governo, do mau emprego…mas eu não entendia essa linha política internacional. Eu não sabia. Eu era analfabeta. Analfabeta. E, naquelas reuniões, quando a gente estava discutindo uma ação, muita coisa eu não aceitava. O que eu fazia: não assinava nada. Dizia: “não vou assinar, porque meu irmão morreu nisso e eu não vou ser besta de morrer como ele”. Você veja o meu nível político onde se encontrava! Aí, eu disse pra dona Therezinha Zerbini que tava muito difícil pra mim, que não tava entendendo nada daquilo e eu não queria ser instrumento de utilização. Eu não queria. Aí foi que ela disse pra eu me preparar porque ali tinha vários grupos políticos. Cada uma que tava ali representava algo. Mas eram mulheres.
Eles passaram a entender que se você quer alcançar um objetivo não adiantava você ir contra um sistema que tinha metralhadora, arma e a gente tinha o quê? Só morte, morte, morte e exílio, exílio, exílio. Então, foi isso o que eu aprendi. Aprendi a conviver com as diferenças. E que nenhum é ruim. Um ou outro exagera, mas todo mundo queria o mesmo objetivo. A gente queria um mundo melhor. Eu queria como cristã. Só isso. Mas eles queriam como políticos. E eu não aceitava isso. “Foi nisso que o Tito se meteu?”. Eu ficava assim, pensando. Foi quando comecei a ter consciência política.
DEFENSORIA: Por falar na história e luta do seu irmão, existe algo que a senhora acha que se repete na política atual? De que forma a vida do Tito deveria servir de alerta? E o que a senhora aprendeu com o seu irmão?
NILDES: [silêncio] Primeira coisa: eu aprendi com ele que a gente não pode ser besta pra deixar que lhe usem. Em muita coisa, eu continuo achando que ele foi ingênuo em achar que ele era culpado de, na hora dos açoites e torturas, ter soltado um nome lá. Isso ficou. O martírio. Tanto quanto o martírio das lapuadas e choques elétricos que ele levou. Faltou a ele algum amadurecimento. Ele não admitia que tivesse soltado nomes na hora das torturas. Eu achei que nesse ponto, quem se mete em questão de luta desse tipo, de desigualdades, você sabe que o inimigo é perigoso. Então, você não vai pensar que vai convencer com suas palavras o inimigo. Porque ele não se convence do mesmo jeito que você também não.
Eu achei que houve uma ingenuidade. Ele não estava preparado. Ele era muito criança. Ele conviveu num ambiente que não tinha maldades nem mentiras em torno dele, que era a família, onde ele foi muito amado, e não teve um amadurecimento pra isso. Eu cheguei a conversar isso com ele ainda. Porque a retidão dele, a pureza que ele tinha pelo respeito do sofrimento do outro era tamanho que ele achava que ele era culpado. E ele não podia ser culpado disso porque ele estava sob tortura. Bota um choque elétrico nas tuas partes mais íntimas, nos teus órgãos genitais, pra experimentar o que você responde a isso. Nisso aí, ele não foi capaz. Mas eu não sei se eu falando isso pra ele e acontecesse comigo se eu não faria a mesma coisa. Eu acho que também eu tinha me arrasado. Ele se arrasou. Ele nunca se perdoou do que ele disse.
Por mais que a pessoa diga que está pronta, ninguém sabe que fracasso está dentro da pessoa. Exigir muito dele ou ele se exigindo muito do que ele não foi capaz, ele não reconhecia a fraqueza dele pra enfrentar uma tortura. E tortura não é brincadeira. Isso me serviu de lição: pra qualquer grupo, eu me entrego, me doo, mas pra minha defesa não me usa não. Eu sigo achando que ele foi usado não porque quis, mas as pessoas estimulam muito pra você se encantar e fazer uma ação que às vezes você não está pronto pra ela em termos de amadurecimento. Então, eu bati muitas vezes na mesa e disse: “vocês não vão me usar como usaram meu irmão”. Doidice minha. Imaturidade minha também. Mas disse. Assumo. Hoje, talvez, eu não dissesse mais, porque o tempo e a história vão mostrando coisas.
Outra coisa: não é bom a gente querer ser herói de ninguém. Eu não quero ser herói de ninguém. Eu quero viver a minha possibilidade. Eu aprendi isso. Eu não sei se ele queria ser herói de alguém, mas eu acho que se ele tivesse se preservado mais ele tinha escapado. Mas não adianta não. Deus sabe o que faz e ele também. Eu aprendi isso: eu convivo com qualquer grupo, eu acho. Mas eu tô de olho até onde estão me usando. Quero a minha liberdade! Se eu fizer, é porque eu quero e não por coisas ilusórias. Isso eu aprendi. E acho que seria uma das coisas a serem trabalhadas num líder. Por que são sempre os líderes que morrem e vão presos e os outros não
DEFENSORIA: Como a senhora encara os discursos hoje clamando pela volta da Ditadura e de pessoas idolatrando pessoas como o general Ustra? Como a senhora recebe essas falas, tendo a Ditadura tirado a vida do seu irmão?
NILDES: Eu vejo assim: a gente sabe que nem todo ser humano está formado ou recebeu informações, uma bagagem de conhecimentos… Aí, entra uma parte que a pessoa pode achar que está certa. Que o que está fazendo está certo. Acho que entra também aí um pouco do descompromisso, de sensibilidade com o outro. A pouca sensibilidade com o outro. Tem pessoas que se iludem facilmente. Se iludem mesmo. Acho ignorância, no sentido de saber. Saber das coisas. E acho também que tem muita ingenuidade. E acho também que é interesse próprio.
Tem uma série de contravalores que não conduzem a pessoa para uma visão mais correta dos fatos e uma disposição para querer mudar aquilo ali. Porque não está lhe atingindo. Não está. Não tem jeito não. Vamos conviver com essas diferenças. O que a gente vai fazer? Pegar aqueles que ainda têm maleabilidade e trazer para conscientizar mais.
DEFENSORIA: Mas a senhora acha que existe a possibilidade de o Brasil viver outra ditadura?
NILDES: Eu sempre digo aqui em casa que por trás disso tudo o que estamos vivendo tem um plano pra ditadura. Eu nunca me enganei. Embora eu não seja uma analista política, mas a gente tem intuições. Não é por acaso que a gente, professora, faz uma leitura profunda de texto com os meninos e tem muita possibilidade de analisar o que o outro tá falando.
Não tem quem me tire das observações que há uma intenção e um plano de mexer com o estado de direito que a gente tá vivendo. O que a gente tem pra fazer? O desmonte disso aí. Nós teremos condição de enfrentar uma ditadura? Seria muito pior do que a que nós tivemos, porque a forma de se armarem vai ser diferente, mais sofisticada. E eles ficaram mais sabidos. Eles estão mais sabidos. Eles também tiveram pouca experiência com a ditadura. Estamos num perigo muito grande. Muito grande. Eu sinto isso e pouco me enganei na minha vida, viu?
DEFENSORIA: Professora, a senhora foi vereadora pelo MDP. É verdade a história de que a senhora discutiu com o vereador Ademar Arruda e bateu nele com uma sapatada?
NILDES: É verdade. Eu, inexperiente, e eles fazendo as maiores falcatruas do mundo para elegerem o presidente da Câmara. E eu me desesperei, porque nunca tinha visto aquilo. Eu não tive conversa. Puxei o sapato do pé… O Bionor diz que eu bati. Eu não me lembro que tinha batido não. Mas fiz, fiz isso. Por isso que eu digo que a vida é um eterno crescimento. Eu não tinha experiência política com eles daquela forma. Aquilo era uma loucura.
DEFENSORIA: Com que palavras a senhora definiria a sua trajetória, pensando sempre na perspectiva dos direitos e da igualdade social?
NILDES: “Ide. Pregai. Dai testemunho. E eu os procederei na Galileia”. Olhe, é uma ordem. É uma militância que está sendo conduzida para o leigo. Qual é o testemunho que eu vou dar? Ide, para quê? A primeira coisa que eu, na minha formação humana, política, nos meus conceitos, aprendi foi que não foi pra qualquer coisa que a gente nasceu. Não foi pra qualquer coisa. A gente tem algo a fazer aqui. E esse algo a fazer é o outro. É o outro. E esse outro é a minha parte. É a minha espécie humana. Sou eu. O outro sou eu, porque é humanidade!
Se eu não der um testemunho dentro da minha vida, das minhas possibilidades, lógico, porque eu não posso dar além do que eu sou possível, mas também tenho que saber o que eu possibilitei e o que foi possibilitado pra mim, porque eu posso ter tudo e não ter tido oportunidades pra conhecer, pra ler, pra caminhar, pra conviver… Se eu não tive essas experiências, eu sou nada. Ou, se sou alguma coisa, sou muito pouco.
É aí onde entra a nossa responsabilidade. Eu sou responsável pela humanidade que estou vivendo. A minha história é agora, não a da humanidade daqui a 30 anos. Então, eu tenho obrigação de fazer isso. E obrigação de fazer com que o outro aprenda e compreenda isso aí. Porque nós só temos esse destino: de a própria humanidade crescer junta e favorecer ao outro o que o outro está precisando.
Eu sinto que isso é trabalho. Isso é educação. Porque o que é educar? É fazer o homem se levantar e se construir, se possuir, ser capaz de. Agora, se ele não chega a isso, é o homem das bijuterias, dos passeios, do carro, mas essa não é a finalidade da humanidade. Não adianta a gente querer se enganar. Isso é religião? Não sei se é religião. Sei que tá na cara que a gente é responsável pelo outro. Sou eu que estou aí. Não resta a menor dúvida de que você é o outro, mas é o outro que tem tudo o que eu tenho: sentimento, inteligência, valores…
Educação leva a escola. Agora, o que é a escola? Se estivermos falando daquela escola formal, da ciência, dos experimentos, da discussão, do debate, aquela que é “a oficial”, ela é uma parte disso. Mas a família, o meio ambiente, as rodas sociais, o cinema que a gente vai, tudo isso é educação. E a gente não tá pensando nisso.
DEFENSORIA: Quando a senhora diz que “eu sou responsável pelo outro”, é isso o que faz a senhora, com 89 anos, já podendo estar desfrutando de uma vida tranquila, continuar em sala?
NILDES: Com certeza. Eu tenho uma certeza tão grande disso que quando eu olho pra cada criança parece que eu tô vendo ela crescida. Hoje, uma criança chegou perto da outra e a outra tava cantando. As duas têm quatro aninhos. O pequeno disse: “não cante”. Mandou no outro. Aí, o outro parou, ficou assim e a professora chegou pra gente e disse: “ele é assim”. E o menino obedeceu. Aí, eu cheguei perto da criança e perguntei: “por que ele não pode cantar?”. Claro que eu não fui passar um carão na criança. Aí é onde entra a pedagogia! “Por que você não quer que ele cante? Você não gosta?”. Aí, ele disse: “não gosto”. E eu disse: “mas você canta?”. “Canto”. “Aí, tu canta e ele não canta?”. “Não”. Olha o que vi logo na criança: o instinto do poder. Porque a gente tem isso. É um valor, mas pode ser um contravalor.
Aí, eu disse: “os passarinhos cantam?”. “Cantam”. “E ele não pode cantar?”, eu disse. O que eu procurei fazer: o menino raciocinar? Não. Vou mexer com o coraçãozinho dele, que eu não sou nem besta. Porque a criança é puro sentimento. Como eu vou fazer um menino de quatro anos raciocinar? Vou nada. Eu não sou burra. “Olha, ele tá triste! Você não deixou ele cantar e você canta?”. Do que ia adiantar eu dizer: “ele vai cantar porque ele tem direito”? Nada. Não adianta porque ele não tem o alcance disso. Mas ele tem o coração, o sentimento. Aí, ele vai se sensibilizar. Porque primeiro você educa, trabalha e desenvolve o sentimento. O que tá faltando na humanidade todinha? Se a gente não fizer isso, vamos viver em guerra!
DEFENSORIA: A senhora pensa em parar de lecionar?
NILDES: Não. Eu não quero parar não. É gostoso. É bom. É interessante. Eu penso assim: a gente, até pra morrer, a gente precisa saber. Tem que saber morrer, porque senão você vai morrer se estrebuchando. Você tem que saber morrer, não é verdade? Então, quero saber viver. Eu vou viver até o fim. Agora, eu tenho medo de não saber morrer. Como é que vai ser? Eu vou ficar deitada? Eu vou ficar aleijada? Eu tenho cuidado agora, pra não cair. Eu penso nisso. Mas, ao mesmo tempo, eu penso assim: se eu ainda tenho uma missão aqui a fazer, eu tenho que ir até o fim com ela. Eu vou até o fim com a missão, nem que seja bem pouquinho. Mas eu vou vivê-la até o fim.
DEFENSORIA: A senhora tem medo de morrer?
NILDES: Eu tinha. Sinceramente. Eu tinha medo de morrer. Eu tinha medo de não querer morrer. Pronto. É isso que eu temo: ser covarde. Na verdade, eu vou dizer que a minha vida é ruim, com todos os sofrimentos e tudo? Não é. Só em eu estar viva é uma coisa boa. Só de olhar praquele mar, só em ter tido a oportunidade de a gente se encontrar… Cantar, cantar, cantar… Eu quero viver. Mas se a minha inteligência fracassar… Eu tenho medo de dar trabalho aos outros. Mas eu acho que tudo será provido conforme a vida de cada um. Eu não vou me preocupar com isso não. Eu quero é ir pra escolinha todo dia. Eu quero é estar lá, porque faz um bem pra gente. Mas faz um bem!
Olhe…eu chego lá, os meninos me veem como velha, mas me amam como velha! É aquele abraço! As crianças são lindas! Cada vez mais, a gente vai vendo que a criança não tem a riqueza, nem pobreza, nem sexo, nem nada. Ela é uma criança em potencial e nada mais que isso. Não tem nada melhor no mundo! Não tem remédio melhor no mundo do que uma criança! E quando eles fazem uma danação?
DEFENSORIA: A senhora continua com essa sina de gostar dos mais danados?
NILDES: (sorri) Continuo. Agora é uma menina. Mas é terrííííível, terrível, terrível! (risos) Mas continuo sim. E você sabe que nos mais danados tem valores de liderança? É tão interessante! É que fica desvirtuado e a criança não sabe usar o seu potencial. A riqueza da nação tá nelas. Não é no petróleo nem em nenhum outro canto. É nelas! Então, a gente tem que ser o mais humano que a gente puder. A gente tem que seguir nossa humanidade. O nosso destino é esse. Mas não é fácil não. Ser humano não é fácil.
DEFENSORIA: O sentimento de estar em sala continua o mesmo do começo?
NILDES: Em mim? Continua! Com certeza! Mais ainda, sabe por quê? Vou lhe ser sincera. Eu, hoje, sou capaz de ter uma convivência mais corajosa com as crianças, de “permitir”. A gente tem pressa pra não chegar ao fim do ano e ela não chegar sabendo. Mas ela vai chegar sabendo. Eu acho que hoje eu tenho mais possibilidades do que eu tinha até o ano passado. Mais hoje do que antes. É interessante, viu? É interessante.
Eu agradeço muito ter esse dom. Porque, na verdade,você, na faculdade, você aprende técnicas, você aprende processos, você se organiza, mas o dom? Não é a faculdade que dá. O dom é algo da pessoa. É algo que tá dentro, dentro, dentro da pessoa. Posso não desenvolver. Mas se você desenvolve, quanto mais você desenvolve, mais o dom germina.
DEFENSORIA: E a senhora sempre sentiu ter esse dom?
NILDES: Sempre. Sempre, sempre, sempre. Eu não gosto de falar essas coisas, mas eu me acho privilegiada. A gente vai aprendendo, aprendendo, aprendendo. E quem ensina são os relacionamentos. Eu podia ter destruído. No entanto, eu construí. Mas pra eu chegar a esse nível foi fácil? Foi não. Eu tô aqui por um lugar ou por um serviço? Você vai se questionando. A gente vai aprendendo.
E eu fico feliz de receber vocês aqui.
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