“O sistema não existe para garantir direitos humanos. Mas nós não somos mercadoria. E eu nunca renunciei à verdade das minhas posições. Porque fomos nós, mulheres, que enfrentamos a oligarquia no Ceará.
Nós não somos inferiores aos homens.”

Maria Luíza Fontenele
73 anos.  

Primeira mulher eleita prefeita de Fortaleza e de uma capital no Brasil.  
Nascimento: Quixadá (CE).  
Atuação: Fortaleza (CE).  

“As mulheres foram pra praça pública”

Era uma sexta-feira. Dia de Oxalá. Para quem é de terreiro ou acredita nas energias emanadas desses lugares, é quando se homenageia o orixá que personifica o céu e representa a criação da natureza. Para isso, veste-se branco. E foi exatamente no que Maria Luíza Fontenele reparou ao ser recepcionada por um repórter, conhecido antigo, nesses trajes. Elogiou e abraçou. Mas deu o alerta: “não pode agarrar muito não, porque senão amassa o cabelo”. E sorriu.

Primeira mulher eleita prefeita de uma capital no Brasil, ela se enfeitou toda para a entrevista. Colar de pérolas, penteado feito, um cheiro bom deixado no ar, camisa estampada em vermelho sobressalente, calça preta lisa de linho, sandalhinha de salto baixo e sorriso no rosto. Chegou à Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) a pé. Mora próximo e é acostumada ao itinerário. Escolheu o local para a conversa acontecer justo por isso. Mas também porque foi lá onde começou a vida política, quando eleita deputada estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) do fim da década de 1970.

Mal entrou no Plenário 13 de Maio, Maria apontou para o lugar no qual sentava nos tempos de parlamentar. Segunda cadeira da primeira fileira à esquerda da tribuna. Era de lá que travava embates, falando em prol de populações historicamente marginalizadas. E com as quais contou para vencer um pleito dado como perdido rumo à Prefeitura de Fortaleza. Foi dessa poltrona que ela rememorou o caminho percorrido até aqui.

Antes, porém, recebeu um retrato. O presente do fotógrafo ZeRosa Filho mostra uma Maria Luíza quase 40 anos mais moça, em preto e branco, de vestido e braços cruzados durante visita de dom Helder Câmara e dom Aloísio Lorscheider ao Paço Municipal fortalezense. Ao fundo, uma pequena multidão na qual destaca-se um homem: o pai de ZeRosa, também fotógrafo. Era década de 1980 e a então petista usava um sorriso largo como prefeita de uma gestão turbulenta que, como define, foi marcada pela sabotagem de alas conservadoras e elitistas da política – de quem, a despeito disso, diz não guardar mágoas.

Uma confissão marcou o momento pré-entrevista, quando discutíamos temas para o bate-papo e ajustávamos o maquinário. “A última vez que falei do Tito, meu filho, eu desmaiei. E foi exatamente aqui. Não tenho condições”, disse, com a voz já embargada. Maria referia-se a Frei Tito de Alencar, um expoente da luta em prol dos direitos humanos e ícone de resistência à ditadura. Decidimos, então, que ela falaria dele somente se julgasse ter condições.

De outra emoção, no entanto, não houve como fugir. Lembrar da ex-aluna, companheira de militância, parceiras de teorias quase impossíveis e, sobretudo, grande amiga Rosa da Fonseca, de quem havia se despedido três meses antes, fez Maria interromper a entrevista. Foi preciso recuperar o fôlego e dar novo prumo aos dizeres. Um intervalo curto, de cinco minutos, para um gole d’água e dar tempo de secar a lágrima, teimosa em sair.

Tal qual musicaliza o poeta carioca sobre todas as Marias, a nossa Maria, a Maria Luíza Menezes Fontenele, essa filha do sertão de Quixadá, é uma mulher que merece viver e amar. É uma força que nos alerta. “A gente radicalizou muito”, admite. E reflete, sendo hoje uma ativista em defesa do não voto e da construção de uma nova sociedade: “o mundo do macho brochou.”

Confira a entrevista.

DEFENSORIA: Quem é Maria Luíza Fontenele?

MARIA LUÍZA: Eu, em 1942, nasci na Serra do Estevão, à época, Quixadá. Meus pais tinham propriedade próximo à serra e foi pra onde nós nos deslocamos depois de um certo período na Serra do Estevão. Esse local se chamava Senegal. Era uma propriedade dos meus bisavós e tinha esse nome por causa de pessoas que vieram da África e marcaram presença naquele espaço. Aos nove anos, eu chamei a menina mais nova dessa família pra gente se juntar e sermos mais danadas do que os meninos.

Após esse período, eu saí do sertão para estudar. E eu fui interna num colégio de freira. Eu, minha irmã Zeneida, mais nova, e a irmã Luci, mais velha. Aos 12 anos, eu comecei a namorar e as freiras chamaram meu pai para comunicar esse fato. E o papai apenas reclamou porque eu tinha recebido os bilhetinhos, já que eram proibidos no colégio. Mas disse que não receberia os bilhetinhos, porque tinham sido dirigidos a mim. Foi uma lição que marcou toda a minha vida: ele, um senhor tão autoritário, respeitava a intimidade de uma garota de 12 anos. Não é o mesmo modelo meu, mas… (risos)

As freiras, pra que eu deixasse de namorar, me botaram pra fazer tudo o que você possa imaginar. Eu comecei a dar aula de adultos à noite, fazia teatro, estudava piano, além do que as freiras me botaram pra fazer o discurso pelo evento que marcava os 25 anos de padre da cidade. Eu fiz, portanto, o meu primeiro discurso na praça de Quixadá com essa idade. Depois, começou a ser um pouco conflituosa a orientação religiosa com essa visão que eu tinha de dançar, de beijar, que eram as coisas que eu podia fazer na época com meu namorado. Então, eu pedi ao meu pai que não queria mais ficar internada num colégio de freira.

Nisso, minha irmã já havia casado com o Cid Carvalho depois de uma grande polêmica, porque meu pai não queria que ela casasse com um filho de comunista, que era o Jáder de Carvalho. No entanto, essa época, ela estudava aqui, no Colégio Santa Isabel, e as irmãs, diretoras e outras mais, que haviam conhecido o Cid, disseram ao meu pai que ele era uma pessoa extraordinária. Então, eu saí do colégio de freira e vim morar vizinho à casa de um homem comunista. Então, logo logo fui atraída pelo Liceu do Ceará e ele, doutor Jáder, dizia que era o meu destino. E eu entrei no Liceu já apoiando a chapa de oposição.

(cantando)
“Nós somos da juventude liceal/
O pleito já se aproxima/
Levemos o Clec à nova rotina/
A chapa é de oposição/
Votemos todos, sem exceção/
Pois o Liceu precisa de uma turma que tenha ação/”

E, a partir daí, aconteceu uma proximidade com o Pirambu, Arraial Moura Brasil e essas áreas em que a gente ouvia falar do povo sofrido da cidade. Eu tinha uma orientadora lá no Liceu que era uma professora que orientava o clube de líderes. E eu fui escolhida como líder da minha turma e, daí, passei a ter uma atuação muito grande dentro do Liceu. Meu sonho em vir pra Fortaleza era participar do maracatu. Como não participei, era participar como porta-estandarte da bandeira do Liceu. Mas quem foi escolhida foi uma loira muito atraente (risos). Então, eu me destaquei nas danças e outras atividades. Ao término, fui fazer Serviço Social por orientação da professora Irene Bessa.

DEFENSORIA: Como foi essa experiência na universidade?
MARIA LUÍZA: Eu, ao entrar na universidade, foi no mesmo momento em que o Pirambu marchava pra dentro de Fortaleza cantando uma música e nós, eu e a Fatinha Fonseca, irmã da Rosa, fomos na linha de frente da passeata. A música era assim:

(cantando)
“Vem ver, ó, Fortaleza, o Pirambu marchar/
Somos pessoas humanas, temos direitos que ninguém pode negar/”

Então, a partir da questão do Pirambu, o estudante de economia Agamenon Almeida começou a nos convidar pra participar de uma pesquisa que analisava as condições de vida do povo de Fortaleza. Do Pirambu ao Mucuripe, a gente começou a participar como pesquisadora. À época, eu estava praticamente noiva de um militar e comecei a sentir que a coisa não tava muito bem (risos) com as ideias novas. Fui escolhida para ser da secretaria de arte e cultura da União Estadual dos Estudantes (UEE), que tinha como presidente o Zé Maria Barros Pinho, que chegou aqui algemado, vindo do Piauí, e o governador Virgílio mandou tirar as algemas porque não aceitaria um estudante algemado no Ceará por ser considerado subversivo.

Nessa época, comecei a ter uma relação muito mais forte com o Agamenon por conta do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Ele, além de ser da direção da UEA, gostava muito de arte, de música e era ligado a esse setor. Como as coisas já vinham estranhas, eu decidi que não continuaria a relação com o militar e casei com o Agamenon ao término do curso de Serviço Social. Nesse mesmo ano, antes do casamento, meu pai faleceu em Quixadá e lá nós fomos acolhidos pela família da Rosa da Fonseca após o velório, por conta da minha relação forte com a Fatinha, que era minha companheira de Serviço Social.

Casada com o Agamenon, logo em seguida ele recebeu uma bolsa pra ir pros Estados Unidos. Nessa época, eu tinha tentado ter um neném, mas não consegui sustentar. Quando recebi a notícia da bolsa dele, eu vi que tava grávida da Andrea e tive uma pré-eclâmpsia. Então, o Agamenon foi na frente e eu esperei pra não ter problema na viagem. Fui próximo ao meu aniversário e a Andrea nasceu lá, em janeiro do ano seguinte. Mas, nos Estados Unidos, eu escolhi coisas que facilitassem a minha vida na pós-graduação que fui fazer: um curso relativo a países da América Latina, um curso sobre Cuba e outros de igual natureza. Esse pessoal era muito avançado, os estudantes que faziam esse tipo de curso. E tinha um movimento muito forte contra a Guerra do Vietnã e contra o Golpe do Chile, na década de 1970. E eu me engajei nessas lutas de forma que lá, nos Estados Unidos, eu tinha recebido a notícia da prisão da Rosa, que enfrentou o Jarbas Passarinho como representante do conselho dos estudantes. Ela tinha sido muito desaforada com ele, que era ministro da Educação. Vi no jornal e foi um choque.

Eu vim antes do Agamenon, porque o pai dele estava muito mal e queria conhecer a neta. Chegando aqui, recebi uma carta da dra Therezinha Zerbini que queria saber de uma companheira paulista que estava no Ceará, quem era a pessoa para criar o movimento feminino pela anistia aqui. Ela disse que, na cabeça dela, tinha três pessoas: a irmã do Frei Tito, Nildes Alencar; a doutora Lourdes; e a mim, porque disse que eu cheguei sem medo. Aí, criamos o núcleo inicial, que foi o terceiro do Brasil, porque aqui havia um contingente grande de presos políticos, de pessoas perseguidas, de pessoas na clandestinidade e de pessoas exiladas.

DEFENSORIA: E você chegou sem medo mesmo, Maria? É verdade isso?
MARIA LUÍZA: Verdade. E mais: quando a Rosa sai da prisão dizendo que aceita participar do movimento pela anistia, eu pensei: “se uma pessoa que sai da prisão vai participar, eu não posso negar”. Então, entrei de corpo e alma. Foi, digamos assim, a luta que mais foi de corpo e alma. E nós dizemos que o movimento da anistia foi essa coisa grandiosa capaz de galvanizar corações e mentes. Quando a dra Therezinha Zerbini veio ao Ceará, qual foi o colégio que se abriu para nós fazermos a assembleia? O colégio que eu estudei, o Ginásio Nossa Senhora de Lourdes. Vocês podem imaginar minha emoção de ter chegado no colégio com 15 anos e voltar depois de um tempo grande para fundar ali, naquele colégio, um movimento feminista?

Tudo o que vocês puderem imaginar nós fizemos. Inclusive, eu nunca pensei em chegar a esta casa e participar desse poder. Foi o movimento de anistia que definiu isso. À época, a dra Therezinha Zerbini, o Partido Comunista do Brasil e a Ação Católica, todos queriam que tivéssemos representação no parlamento pra poder dar impulso à luta da anistia. E foi essa a razão que me fez chegar aqui. Antes disso, a gente já pedia apoio a alguns parlamentares que estavam aqui. Um deles foi o Adahil Barreto, perseguido político, e ele me levou a Iguatu, que era o colégio eleitoral dele. Em lá chegando, quando foi na hora do comício, que disseram “agora vai falar a candidata a deputada estadual Maria Luíza Fontenele”, a luz da cidade apagou. E eu cantei, a voz alta: “Faz escuro, mas eu canto/ Porque o amanhã vai chegar.”

Era uma das músicas que a gente cantava no movimento da anistia. Não só da anistia, mas pelas Diretas Já. Enfim, coisas dessa natureza. E um jornalista daqui foi no Tauá, onde eu fui fazer um comício, e ele saiu daqui questionando como que a igreja apoiava uma pessoa divorciada. Ele disse: “uma pessoa que não é nem conhecida, como é que vocês vão votar nessa criatura? Ela vai se eleger dando?”. Aí, o padre disse: “é dando que se recebe”. E aí as meninas ligaram de lá e sabe quantos votos eu tirei lá? Mil. Uma pessoa que não era conhecida em Tauá, mas tinha apoio dos movimentos de Igreja. E fui eleita deputada e a razão era lutar pela anistia.

DEFENSORIA: Você acredita que sua trajetória política começou no Liceu, com o movimento da anistia ou antes, lá no colégio das freiras?

MARIA LUÍZA: Eu penso que não quando eu transgredi, mas quando elas resolveram me adubar com tudo quanto era possível pra uma pessoa naquela idade. Elas me botaram pra fazer coisas muito acima da minha idade, inclusive fazer discurso. Por que eu, se tinha no colégio ginásio e eu tava entrando ainda? Nas freiras, eu penso que foi um potencial. Mas o potencial político veio no Liceu. A Rosa, lá em Quixadá, já era ligada aos movimentos estudantis. Eu não.

DEFENSORIA: Quando você ingressa na política partidária, o que é que você encontra?
MARIA LUÍZA: O PMDB servindo de guarda-chuva para os vários movimentos que não eram ligados aos partidos comunistas. Na época, era MDB, não era PMDB. Depois foi que veio a questão partidária. Aqui, estavam Wilson, Castelinho, Bionor de Andrade, Barros Pinho… Você tinha essas pessoas na luta pela abertura democrática e tínhamos como governador o Virgílio, que tinha representantes aqui que eu achava… por exemplo, o Fernando Mota era uma pessoa que colocava o nosso discurso lá em cima, por conta da capacidade que ele tinha com o opositor. O próprio Ubiratan Aguiar era alguém que a gente tinha divergência. Não era amor e ódio, mas era amor e divergência forte.

Por exemplo: eu coordenei a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e eu queria que o diretor fosse eleito pelos professores e o Ubiratan queria que o diretor fosse indicado pelo governador. Eu era oposição ferrenha ao Virgílio e o Virgílio soube que eu não fechava a bolsa e mandou dizer pela Luíza Teodoro que eu tivesse cuidado, porque iam botar maconha pra me incriminar por conta da minha ligação fora. Qual era essa ligação fora? Com o movimento sindical. Nós criamos a União das Mulheres Cearenses com direção de Rosa Fonseca, Maria Luíza Fontenelle, Célia Zanetti, Raimunda Zélia, que era cria do dom Fragoso e vinha lá de Crateús, da Cristina, irmã da Rosa, e a Terezinha Bezerril, mulher do Benedito Bezerril. Menino, essa União das Mulheres era um terror nessa cidade, porque nosso lema era “violência não, assassino na prisão.”

DEFENSORIA: Desde que chegou na Assembleia, a senhora era uma das únicas mulheres como líder?
MARIA LUÍZA: Não. Aqui, nós tínhamos uma deputada que tinha um peso muito forte, que era a Dovina de Castro, filha do Manoel de Castro, governador antes do Virgílio. Tinha a Maria Lúcia, mas era bem comportadinha. Tinha a outra Maria, que era esposa de um prefeito. E eu. Então, quem mais se destacava era exatamente eu, pelo fato de ser oposição.

Uma vez, um deputado disse: “Maria, você é machista do MR-8”. E eu disse: “deputado, eu não sou machista. Machista é o senhor. Eu sou marxista. E não sou do MR-8, porque sou contra o autoritarismo”. Meu pai era uma figura que não admitia e quando eu entrei no Serviço Social, ele era latifundiário, cheguei e disse: “papai, eu agora sou pela reforma agrária e contra a propriedade privada”. E quem é que colocou isso na minha cabeça? A Igreja. Quem colocou na minha cabeça que sobre toda propriedade privada tinha um interesse social acima? A encíclica. Como eu era muito ligada ao movimento das comunidades eclesiais de base, e a Rosa da ação popular ligada ao PCdoB, aqui, na Assembleia, era um espaço maravilhoso.

Aquiles era o presidente da Assembleia e era proibido entrar de calça comprida. Aí, eu chego aqui de calça comprida e ele: “eu não vou lhe dar ibope e vou mudar o regimento”. E eu disse: “mas mude não só pras deputadas e sim pra todas as mulheres”. E, de repente, essa notícia ganhou o mundo. Aí, ele disse: “mas venha direitinho, porque você já me dá trabalho de saia, avalie de calça comprida”. Olha a arrumação! (risos)

Eu fui escolhida pela anistia para ser da coordenação nacional e fui escolhida para acompanhar os familiares de mortos e desaparecidos na região do Araguaia. O Bergson tinha sido morto lá e era uma figura que eu tinha conhecido como estudante e como professora. E tinha Genuíno. Então, era um problema muito grave pra mim. Posso dizer que o maior medo que eu registrei em toda minha história de vida foi lá, na região do Araguaia. A gente era seguida por uns caras mostrando, acintosamente, as armas. Armas potentes. Mas fui e voltei inteira. E, depois, fui reeleita.

DEFENSORIA: Foi você que escolheu ser professora ou o magistério que escolheu você?
MARIA LUÍZA: As duas coisas, porque eu estava com conflitos grandes como assistente social. De noite eu ia nas comunidades e dizia pro povo que resistisse pra eles não serem expulsos daquela área e, pela manhã, ia o carro da fundação onde eu trabalhava. Foi nessa época também que eu perdi meu primeiro neném e eu comecei a achar uma coisa conflituosa. Mas além desse conflito era o conflito de ser mãe.

Então, eu fui convidada pelo professor Diatahy Bezerra de Menezes, que tinha sido meu professor na graduação. Chamaram Maria Laura e eu, que tinha feito TCC comigo. Nós éramos orientadas pelo Patassi Santiago, que era professor também, e pela Maria do Carmo Galvão, que era nossa brilhante professora. Nós fomos convidadas pra ajudar a criar o curso de Ciências Sociais na universidade. Depois fomos concursadas como professoras.

DEFENSORIA: E como foi essa experiência de voltar pra universidade como professora? Muda muita coisa?
MARIA LUÍZA: A escola de Serviço Social era uma escola dirigida por freiras e agregada à UFC. Então, a minha participação dentro da universidade era mais no movimento estudantil. Mas por fora. Quando eu entro como professora, logicamente que os alunos que eram mais subversivos, todos, se aproximaram de mim. E uma das alunas foi Rosa Fonseca.

Uma vez, quando eu tava dando aula, o espaço foi cercado pela Polícia. Eu perguntei: “alguém tem algum problema aqui?”. E a Rosa disse: “eu tô cheia de panfleto aqui”. E eu disse: “pois distribua logo esses panfletos com o pessoal todim”. Mas era diretor nessa época o Paulo Elpídio de Menezes Neto e ele não deixou a Polícia subir, arguindo a autonomia universitária.

DEFENSORIA: Queria que você falasse do seu primeiro mandato e da reeleição. Como se deu a relação das forças partidárias?
MARIA LUÍZA: Nós tínhamos um peso muito grande em todas as lutas do Ceará. Criamos a União das Mulheres e criamos a União das Comunidades da Grande Fortaleza. Nessas junções, junto com as Comunidades Eclesiais de Base, e até o momento em que eu fui prefeita, sabe quantas ocupações de terra em Fortaleza? Cem. Então, era uma base popular muito grande. Fui reeleita deputada estadual sem grandes esforços. E aí, quando estávamos nessa questão, o Mauro Benevides votou a emenda pra eleição para prefeito, que antes era indicado pelo governador.

À época, o PMDB achou que ia ocupar os espaços e, nesse momento, o Barros Pinho é indicado pra Prefeitura de Fortaleza e as coisas começam a se antenar e a gente resolve entrar nessa onda. Nós fizemos, no começo do ano, uma passeata no carnaval com uma faixa imensa: “diretas para prefeito”. E dentro do prefeito um “a”, já anunciando uma possibilidade de uma Prefeitura feminina. Fomos checando e o pessoal disse que sim, mas que achava ser difícil ser pelo PMDB porque eu não fazia o perfil do PMDB. Nós consultamos o PT se aceitavam. Uma parte aceitou. Eu me filiei ao PT e, na assembleia, essa parte que aceitou fez uma campanha grande e meu nome foi escolhido. À época, a Rosa era presidente da CUT e um monte de mulheres tinham espaços aqui no Ceará, em várias instituições. Sindicato de bancários, sindicato de professores, CUT, união das mulheres, união das comunidades, eram mulheres em todas!

DEFENSORIA: Mas como era essa mulher fazendo política num contexto tão masculino e machista?
MARIA LUÍZA: Veja bem. Aqui, até o PCdoB tinha presidente mulher. Então, é muito interessante a história das mulheres no Ceará, porque foram mulheres que participaram, inclusive, de momentos muito sérios. Não só a Jovita Feitosa ou essas que se destacaram, mas as mulheres enfrentaram a Oligarquia Aciolly, que foi uma verdadeira guerra.  Não tem mais gente dessa época, mas enfim. As mulheres foram pra praça pública. Nós começamos a questionar a questão da luta de classe, porque não abarcava a questão da mulher.

Então, foi uma confusão, tanto a eleição para a Prefeitura, porque a gente ia administrar com o conselho popular, como a ideia de dar força a todos esses movimentos. E nós dissemos que quem indicaria as subprefeitas ou os subprefeitos seria o próprio povo. Meu filho, a confusão já começou na eleição sobre quem vai escolher quem pra tal função. Administrar com o conselho popular foi uma zorra.

Só na campanha, o que já vem de coisa contra foi muito forte. Muito forte. Era um negócio horrível. Alguém dizia assim: “você é de Quixadá, aquela terra onde até as pedras são galinhas?”. Tive uma amiga que ficou muito raivosa porque não dei resposta. Eu devia ter dito que a única galinha que tinha se transformou em pedra. Aí, eu disse: “Aquiles [presidente da Assembleia], você não influencie o voto do povo aqui da Assembleia. Deixe dessa mania e deixe o povo votar em quem quiser”. Porque o Aquiles tinha um peso junto aos funcionários. Ele dizia: “Maria, tu pensa que tu vai ter voto?”. Eu disse: “Aquiles, eu vou ter voto dos gays, das lésbicas, das putas, das freiras, das mães, dos estudantes, professorras…”. E ele: “credo, Maria! Tu vai ser é eleita, porque o que tem de gay nessa cidade!”. Aí, a Associação das Prostitutas me chamou pra uma reunião. E foi séria. “Maria, nós soubemos que desde que você era estudante de Serviço Social que você defendia as prostitutas.”

E a campanha foi toda permeada dessas questões. Por exemplo: na Praia de Iracema, uma garota disse pra companheira dar um beijo em mim. Outros pediam a liberação da maconha. Outro falava em aborto. E eu dizia: “menino, vocês não querem né numa administração popular não; querem é uma república livre do prazer” (risos) A campanha foi toda permeada disso. E de uma luta muito forte.

DEFENSORIA: Quando a gente olha pro cenário da época, mesmo com você dizendo que tudo isso te impulsionou, as pesquisas diziam que você tinha 3% e, depois, 10%. O desempenho não era o que você sentia na rua. Você não desanimou?

MARIA LUÍZA:
O que ocorre é que esta Maria nunca desejou ser prefeita. Entendeu? Tudo isso era uma forma de você dar força às várias organizações populares que existiam não só aqui como também fora daqui. Num desses momentos, uma pessoa me disse pra fazer mais de um comício por noite. E houve uma luta com os motoristas em relação à passagem. A minha primeira luta aqui foi em relação à passagem, quando eu era estudante do Liceu. Então, eu fui lá pra dar apoio aos motoristas. E foi bala vai, pedra vem. Ou pedra vai, bala vem. E eu lá, com o pessoal. E mataram um motorista. A partir daí, os motoristas entraram na minha campanha.

E era uma coisa fora de sério. Os comícios, meu filho, teve uma vez que eu quase fico sem cabelo, com o povo tudo me agarrando. Noutra vez, eu tava muito cansada, já no terceiro comício, e tirei a sandália. Quando terminei de falar, quede a sandália? Era paixão de juventude. Eram as mulheres querendo firmar essa posição. As avós, a coisa mais linda. Uma mulher cadeirante distribuindo panfleto meu na frente da casa dela. As freiras botando os retratim debaixo do sacrário…

DEFENSORIA: Quando você sentiu que ia ganhar?
MARIA LUÍZA: Aí, eu disse: “gente, tá havendo alguma coisa errada”. Aí fui falar com o secretário de segurança dizendo que todo mundo queria vir pro meu comício. Pedi a ele pra liberar de ser na praça José de Alencar, onde paravam os ônibus. Ele disse: “Maria, vai ser um quebra-quebra danado”. E eu falei: “secretário, alguma vez alguém disse que eu menti? Eu tô dizendo a você que vai ser a coisa mais bonita e não vai ter quebra-quebra porque os motoristas estão me apoiando, os estudantes estão me apoiando, as mulheres nos bairros estão me apoiando”. Aí, depois dessa promessa, ele concordou e nós chamamos o comício para a praça.Nós íamos fazer o comício em outubro. De repente, deu um estalo no Jorge Paiva e ele disse pra gente não fazer em outubro e sim no último dia 12 pro dia 13 de novembro. Pra gente amanhecer o dia 13 na rua. A eleição era dia 15. Foi a coisa mais linda! O comício deu em torno de 50 mil pessoas.


DEFENSORIA: Foi quando você sentiu que ia ganhar?
MARIA LUÍZA: Ah, sim! Aí, no outro dia de manhã, quando a gente ia pros ônibus e pros trens, era o povo todo comentando. Eu fiz um pronunciamento aqui [na Assembleia] que foi divulgado no comício dizendo por que a gente ia virar e nós chamamos as pessoas pra fazer boca de urna. Duas mil pessoas foram fazer boca de urna. Nós amanhecemos no dia 13 no comício, chamamos as pessoas no dia 14 pra fazerem boca de urna e no dia 15 todo mundo tinha o panfleto. Aí, virou.

Eu tinha um cunhado que era da Marinha. Era militar. Ele disse que as urnas, que eram aquelas de voto de papel, iam adulterar. Que eu botasse a minha militância pra vigiar. A turma passou a noite lá, no Paulo Sarasate, vigiando as urnas. Aí, foi um estouro quando começaram. As urnas do Pirambu foram um estouro. Fechou a Cidade 2000 também, porque eu tinha prometido fazer uma drenagem. Pro Pirambu, eu tinha prometido drenagem também.

Aí, o Jorge Paiva disse: “vai lá pro O Povo, dizer que você tá eleita”. Estavam Adísia Sá e Auto Filho, ao vivo, no programa, ao meio-dia do dia 15. Eu tava com toda a militância no Paulo Sarasate quando deram o resultado. Quem chegou junto foi uma senhora do Quixadá que a filha dela era funcionária da Assembleia e votou em mim. Mas posso dizer que até a família do Aquiles [presidente da Assembleia] votou em mim. Foi uma coisa realmente muito bonita.

O processo foi polêmico na eleição, porque a gente radicalizou muito. E quando chegou na Prefeitura foi um desacerto só.

DEFENSORIA: O que você encontrou, Maria, quando assumiu o Paço?
MARIA LUÍZA: Encontramos aquele problema de não ter nenhum controle de funcionário. Tinha 46 mil funcionários, nós passamos pra 26 mil. Tinha gente no Rio Grande do Sul, tinha gente que já tinha morrido há não sei quantos anos e a família recebia pelo morto, tinha criança recebendo, tinha jornalista que recebia por seis cantos diferentes… Nós começamos a regularizar porque tínhamos, dentre as pessoas do nosso ajuntamento, um expert em computação e nesse sistema de organização. Foi a primeira coisa que ele fez. E encontrou uma categoria que não existia no plano da Prefeitura. Um monte de gente colocada no período eleitoral.

Outro peso grande foi a indicação do vice, porque o Américo Barreira era considerado o grande municipalista do Estado. E ele fez reuniões com pessoas muito importantes. E a música. A música da campanha foi outro peso grande. Rapaz, o que essa mulherada cantou de “Maria, Maria”…

DEFENSORIA: Você encontrou muita desordem, então.
MARIA LUÍZA: (risos) Só tinha! Mas, antes disso, eu não tinha muito acesso a essa instância do poder. A minha experiência foi aqui [na Assembleia]. E aqui, se tinha corrupção, eu não identifiquei. Aliás, nem procurei. Porque eu tinha uma relação muito clara de oposição. Então, acho que o pessoal não me deixava chegar junto das coisas que não deveriam acontecer.

Mas assim… sobre a Prefeitura, o PT tinha uma cota de pessoas na administração. O pessoal que veio de fora, do PRC, que era PT, queria outra cota. O meu agrupamento queria uma cota. Vocês podem imaginar a confusão! Aí, eu disse: “eu quero duas pessoas. Quem são essas duas pessoas: os meus dois ex-maridos. Porque são as pessoas que eu confio integralmente na capacidade, na inteligência, na seriedade, como professores adorados pelos alunos, e são pessoas que eu sei que não vão roubar”. Aí, botaram logo a pecha de “dona Flor e seus dois maridos”. Divulgaram, né? Não tinha nada de dona Flor e não tinham dois maridos. Eram ex. E outras questões que foram se somando: empresas e elite botavam pedras, paus e lixo nas ruas para que a cidade não tivesse uma coleta de lixo satisfatória e também atribuíam a fama de que ‘a mulher não limpa nem a rua’.

DEFENSORIA: A conjuntura política na sua gestão não era favorável porque no Governo do Estado estava o PSDB. Você sente que foi sabotada?
MARIA LUÍZA: A conjuntura não era favorável a nada! Nessa questão do lixo houve sabotagem. Na questão de recursos. Nós não tínhamos recursos. A Prefeitura não era independente. Só com a Constituição é que ela vai ganhar autonomia financeira. Outro tipo de boicote era dentro da própria administração: os funcionários que foram botados lá não concordavam com o PT, muito menos com a nossa forma radical de administrar. Porque se você vai administrar com o conselho popular, o conselho popular tem ingerência. E teve. Então, foi uma loucura! E eu não tinha nenhum vereador. A eleição foi só pra prefeita e por três anos, porque era o restante do mandato do Sarney. E logo no segundo ano entrou o Tasso, com um projeto radicalmente diferente do nosso, na onda da ruptura com os coronéis. E eleito com uma margem de votos muito expressiva.

Eu fui ao Governo solicitar recursos para habitação. Como estava numa crise de seca muito grande, as pessoas vieram e ocuparam áreas de rios e lagoas. Quando começaram as chuvas, lá vem as casas caindo. Eu fui pra solicitar recursos de urbanização e habitação. Ele [Tasso], num primeiro momento, tava muito aberto. Mas o pessoal, na luta por urbanização, ocupou o Cambeba. E sabe qual era a situação de Fortaleza? A quinta capital mais mal servida de esgoto do mundo! E sabe o que a Globo fez na época? A chuva torrencial aqui e mandou uma pessoa me filmar pulando dentro d’água pra comparar com Paris. Fora o machismo. Botavam pau dentro dos buracos com o cartaz: “não tire o meu pau do buraco da prefeita”. Era uma coisa terrível!

E o nosso pessoal interno, que não se entendia? Uma vez escreveram “o mal-estar na esquerda”. Porque nós éramos poder contra poder. Não queríamos dar força aos vereadores, não queríamos dar força ao governador, não queríamos dar força à Prefeitura! Aí, eu era prefeita e não dava força à Prefeitura. De repente, quando eu olho, a igreja lá atrás! O padre Bernardo com o povo de Messejana, que a gente tinha apoiado a ocupação. Aí, eu disse: “gente, o que vocês estão fazendo aqui?”. E me disseram: “você ensinou a gente que quem mais faz movimento mais depressa é atendido”. Tu acha? Eu ensinei e eles foram me pressionar.

DEFENSORIA: Você hoje não vota mais e prega o fim do regime político que temos. Qual lição você tira de todas essas experiências na política partidária? Se arrepende de alguma coisa?

MARIA LUÍZA:
Na Prefeitura, quando eu fiz o relatório da minha experiência, eu destaquei muito o papel da mulher. E não foi só isso. Havia todo um processo de organização que começou na luta contra a Ditadura Militar e que se expressou nessa avalanche de movimentos como o Diretas Já e das mulheres reivindicando mais espaços.

O que eu percebi? Tanto homens quanto mulheres têm uma relação de enganação com o eleitor. Você promete coisas que não tem nem ideia da possibilidade,além do fato da compra do voto e a eleição fictícia de mulheres. Colocam mulheres para ocupar uma cota. Nesse sentido, nós éramos contra a cota. Achávamos que se não houvesse uma luta dos movimentos jamais essa questão seria resolvida através do que nós chamamos de “podres poderes”. Toda essa reflexão se torna muito forte para nós do movimento Crítica Radical quando nós tivemos acesso ao pensamento do Marx, que não era  a luta de classes. Era o Marx que era contra as desigualdades, era contra a exploração, era contra a massificação, era contra a fetichização.

O que o Marx viu? Que nós estávamos no período da razão, do iluminismo e, no entanto, tudo isso é submetido à lógica do dinheiro. Porque o capitalismo, diferente das outras sociedades, tem um automovimento próprio, que é o automovimento do dinheiro. E esse dinheiro o que é? A expressão da mercadoria. E a mercadoria o que é? A expressão do valor do trabalho. É uma lógica do sistema, que determina a nossa maneira de ser e agir.

Todas as atividades do macho são atividades que geram valor. Todas as outras atividades são coisas de mulheres. Portanto, tomar conta de idosos, das crianças, a gestação, o cuidado com a casa, a afetividade, o amor, a generosidade, tudo isso é coisa de mulher. O que não está no público, está na família. No entanto, é essa família que sustenta o trabalhador que cria o valor nessa instância. Mas o mundo do macho brochou. O que quer dizer isso? Os homens não são mais potentes? Não. O sistema não tem mais essa potência do automovimento do dinheiro, porque a tecnologia está substituindo a mão de obra que cria o valor. Então, a questão da mulher é central. E esse Marx da luta de classes já foi. Nós queremos é ver um Marx que diz que ou nós rompemos com essa estrutura machista, capitalista, patriarcal ou nós não teremos todas as demais questões resolvidas.

Os poderes, todos eles, são ligados a essa lógica. A política, o Estado, a Justiça estão submetidos a essa lógica do capital. Na medida em que o sistema está indo para o colapso, o que acontece? Nós vamos pro buraco se não apresentarmos uma alternativa diferente da que nós estávamos. Até aquele momento da Prefeitura, eu não tinha dimensão deste colapso do sistema. Porque era um ímpeto tão grande de fazer o povo ficar consciente que essa questão foi mais levada à frente.

A gente queria criar o sistema da emancipação humana, da solidariedade e da partilha. Antes de morrer, o dom Aloísio Lorscheider me deixou uma cartinha em que dizia: “minha boa e querida Maria, a emancipação humana está nas bem-aventuranças”. E eu, que peço a Deus pela minha boa gente, digo que isso é o meu passaporte para o céu. (risos)

DEFENSORIA: Qual a importância da Rosa da Fonseca pra sua caminhada?
MARIA LUÍZA: Rosa foi, talvez, a pessoa que teve mais importância na minha vida. Logicamente, estou fazendo referência às pessoas da luta, que lutaram diretamente, ombro a ombro comigo. Que a Andrea, minha lindona, que tem tanta preocupação comigo, minha única filha, não pense outra coisa. (risos)

DEFENSORIA: Qual mensagem você daria às mulheres que estão entrando na política?
MARIA LUÍZA: A primeira coisa é dizer que o grande ensinamento que trago da minha vida é que nós não somos inferiores aos homens. Essa é uma questão básica. A outra coisa é que tá em decomposição uma sociedade que é a sociedade moderna da razão. O que significa isso? A razão é submetida ao fetichismo do dinheiro e da mercadoria. E nós temos que dizer que não somos mercadoria! Nós somos pessoas cheias de emoção e de afeto.


DEFENSORIA: Que balanço você faz da vida, Maria?
MARIA LUÍZA: Foi uma vida de tanto ensinamento! Tanto ensinamento! E eu tive tantas oportunidades na vida! Eu nunca renunciei à verdade das minhas posições. Acho que a coerência marca a minha trajetória, mesmo com toda a sedução do poder.

DEFENSORIA: Você consegue enxergar semelhanças e diferenças do que aconteceu com você e do que aconteceu com a Luizianne?
MARIA LUÍZA: A Luizianne teve uma situação muito mais difícil do que a que eu tive. E eu disse isso pra ela. O fato de ela ser a segunda mulher a ocupar a Prefeitura e o que nós tínhamos criado até ali com a questão da mulher ela ia sofrer com uma ênfase muito forte, como a gente tá vendo até hoje. As pessoas não romperam com a lógica do machismo, da xenofobia… Ela passou por uma coisa pior do que eu. Porque eu tinha a dimensão do que estava vivendo. E eu não era tão queimada quanto a Luizianne. E já tinha havido a minha experiência. Então, os machistas não queriam outra mulher. E ela rompeu isso.

DEFENSORIA: Mas você também sofreu muito com fake news…
MARIA LUÍZA: Eu posso apenas dizer talvez que eu tivesse um suporte e uma retaguarda com mais firmeza do que a Lôra [como popularmente Luizianne é conhecida]. Mas eu disse a ela que o machismo tava sofrendo um asselvajamento. Na medida em que está havendo o colapso do sistema, o machismo vai se tornando mais selvagem.

O problema que ela não teve foi de contar com recursos. Mas, por exemplo, os professores faziam um movimento forte contra os setores financeiros pra ter os recursos liberados pro pagamento da folha. Eles tinham certeza de que eu estava lutando por isso e, então, eles somavam junto pra isso. E é um dos setores mais fortes aqui, como também em relação aos motoristas. Eles não faziam movimento contra a Prefeitura. Eles faziam contra os empresários.

DEFENSORIA: Você guarda alguma mágoa do que aconteceu na sua saída do PT?
MARIA LUÍZA: Logicamente, quando houve o confronto de ideias numa assembleia que o pessoal ligado a mim foi votar e não pode votar, eles impediram 900 pessoas que tinham se filiado ao PT de votar. Então, como que a responsabilidade era minha? Disseram que nós não podíamos mais ficar no PT e nos expulsaram. Isso foi no período em que o Tasso Jereissati já era governador. Mas eu nunca tive problema com o Tasso. Como nunca tive problema com o Lúcio Alcântara. O Lúcio Alcântara foi quem garantiu o espaço do [parque] Adahil Barreto por luta nossa, ainda quando eu era deputada. Eu não falo mal dele como homem. Falo como prefeito. Como também falava mal do governo do Virgílio. Inclusive, a campanha foi em cima disso. Contra o governo do Virgílio, contra o governo do Barros Pinho, que já era prefeito à época…

DEFENSORIA: Você mantém relação com pessoas do PT? Não tem nenhuma rusga com o Tasso?
MARIA LUÍZA: Mantenho e não tenho rusga com ninguém. Algumas coisas magoam. Mas a gente tem que compreender que temos defeitos, os outros têm defeitos, mas nós temos também coisas maravilhosas. Se formos capazes de sair dessa lógica, nós vamos construir uma sociedade de emancipação humana.

DEFENSORIA: Você tem uma agenda ambiental muito forte. O que fundamenta essa luta?
MARIA LUÍZA: Nós fomos a todos os fóruns sociais mundiais que aconteceram no Brasil. Nós fomos ao Fórum Social Mundial na França, em 2008, pra analisar o que tava acontecendo no mundo e na crise dos Estados Unidos. Fomos em 2010 ocupar a Wall Street, nos Estados Unidos. Nós fomos à Venezuela. Nós fomos à China, na marcha mundial das mulheres, e detectamos o quê? Que não existia socialismo ou ali era um socialismo de Estado. Portanto, a lógica era a mesma: de exploração do trabalho e de entrar na globalização e no sistema mercantil de circulação da mercadoria. E no avanço da tecnologia, que estava jogando fora a população e tornando mais da metade da população seres humanos supérfluos.

Se hoje temos milhões que passam fome é porque o sistema não existe para garantir direitos humanos. Nem garantir a vida. Nem garantir aquilo que a população deseja como condição digna de vida. Ele existe tão somente para garantir acumulação de capital. A crise não é só a crise do trabalho. Não só a destruição dos seres humanos, mas a destruição da natureza. Porque não tem condições de continuar produzindo tanto carro, tanta porcaria e destruindo o meio ambiente. As cidades não são feitas para o nosso bem-estar.