“Quando você vem da pobreza, você tem que fazer de tudo pra conseguir alguma coisa. E você não pode perder tempo com nada. Então, o circo me ensinou a ter esperança. A continuar. Me ensinou que a oportunidade faz toda a diferença na vida do pobre.”
A expressão forte de Katiana Pena se desfez em poucos momentos desta entrevista. Num deles, quando a pauta era a imensidão do instituto que há oito anos ela toca no miolo do Grande Bom Jardim, uma das maiores periferias de Fortaleza, ela chorou. A mulher de quase quatro décadas de vida sabe, como diz, o quanto “a oportunidade faz toda a diferença na vida do pobre”. Por isso, oferecer menos que o melhor não é opção.
Noutra situação, alegrou-se diferente das poucas vezes nas quais sorriu durante os 69 minutos de bate-papo. O olho brilhou mais forte, dada a importância do que se sucedeu. Mas aí as perguntas já haviam cessado. Além das nossas retinas, só a câmera do cinegrafista Marcelo Alves captou a reação de Katiana sendo presenteada pelo fotógrafo ZeRosa Filho, que fez tudo de caso pensado ao ouvir a confissão da bailarina sobre atravessar uma infância inteira sem ver a si própria, por completo, diante de um espelho porque a pobreza permitia apenas um daqueles pequenininhos, de camelô, de borda laranja.
“Terminou, Brunildo?”, perguntou o homem das lentes sobre a gravação. Diante da confirmação, ZeRosa dirigiu-se à mulher: “nós temos um presente pra você”, disse, ao voltar de uma ágil diligência no entorno do Instituto Katiana Pena. Revelou um espelho de borda laranja e, assim, derreteu corações. “Ah, pode ter certeza de que eu vou guardar de recordação”, respondeu ela, encantada com o objeto.
Katiana pareceu transportar-se para um passado. O dela mesma. Ali, no coração da organização na qual oferta à comunidade projetos educativos e de esporte. Justo sobre um tablado de madeira que se estende em linha reta num corredor curto e, na outra direção, duplica de tamanho diante de um reflexo que vai do chão ao teto. Onde, numa das extremidades, portas funcionam como janelas. E a fachada do duplex é colorida, de tinta e sonho.
Foi nesse lugar, visitado por apresentador de televisão famoso e ex-candidata à Presidência da República, que Katiana recebeu a equipe da Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) para uma conversa sobre a vida. Sobre o esperançar, verbo que pratica para manter ativo um instituto que se sustenta de doações e voluntariado.
De quem, pela arte, deixou a pobreza extrema que marcou boa parte da vida pela fome e ausência até da mais simples celebração de aniversário, Katiana deu lugar à dignidade. Os brinquedos, antes vindos do lixo, foram, aos poucos, substituídos por sorrisos genuínos e decorrentes de viagens a lugares incríveis e proporcionados pelo balé. Hoje, ela realiza-se no olhar de contentamento dos meninos e meninas que atende.
“O Instituto é uma projeção da história da Katiana. Transforma crianças e as famílias dessas crianças. Mas quando eu fundei a instituição, não tinha ideia do desafio que é manter uma estrutura dessa oferecendo tudo o que a gente desenvolve. Mas a gente oferece porque a gente ama fazer isso. O que eu não tive, eu tenho que devolver”, sentencia.
Confira a entrevista.
KATIANA: Eu sou Katiana Pena. Eu tenho 39 anos, sou filha da dona Maria e do seu Antônio. Sou mãe do Iarley e da Maria Antônia. Sou casada com o Valmir. E sou uma moradora do Grande Bom Jardim. Uma mulher que tem muito orgulho do lugar onde nasceu e se criou.
A minha história tem uma lembrança muito forte porque minha mãe teve 19 filhos e eu cresci num ambiente dominado pela minha mãe, uma mulher sempre muito forte, que teve que alimentar e administrar a família desde muito cedo. Minha mãe casou tinha 13 anos de idade. Perdeu a mãe dela também com 13 anos de idade. E eu cresci num ambiente muito familiar, muito forte, muito carinhoso, de pessoas muito honestas, mas também rodeada de muita necessidade.
Eu passei muita fome! Quando eu tinha cinco anos, minha mãe distribuiu tarefas pra cada um dos irmãos. E eu fiquei da parte de vender verduras. E aí, pra ajudar nessa renda, o meu irmão caçava lata, a minha irmã ia pra casa de família, outro vendia jornal de porta em porta aqui nos arredores do Bom Jardim, que na época não tinha muitas casas. E aí, eu vendendo as verduras, num tal dia, eu me deparei com uma lona de circo colorida e chamei minha colega que vendia verdura comigo: “tem um negócio colorido ali! Vamo lá ver o que é.”
Na época, eu nem sabia o que era lona nem o que era circo. Me aproximei do espaço. Quando eu cheguei lá, a primeira coisa que eu perguntei foi se lá tinha comida. E a dona Fátima me respondeu dizendo que sim. Eu perguntei o que era aquele lugar e ela foi falando, foi mostrando e eu fui ficando encantada porque até então nunca tinha visto nada assim. Foi meu primeiro contato com a arte. Foi no Circo-Escola do Bom Jardim, onde eu comecei a desenvolver atividades circenses. Em cada término de atividade, tinha um lanche. Eu ficava esperando ansiosa pela hora de comer, porque num primeiro momento eu fui pra comer e não pra fazer a arte. Então, eu sempre falo que a arte me encontrou, a arte me salvou. A partir dali foi que eu tive aquela intuição que eu iria mudar a minha vida.
DEFENSORIA: Mesmo o primeiro contato tendo sido pra comer, como a sua família reagiu a essa tua aproximação com a arte? Houve a resistência daquele tabu de que arte não garante sustento?
KATIANA: Eu lembro que minha mãe e meu pai, já de primeiro momento, disseram: “não. Você tem que trabalhar, tem que ajudar em casa”. Eu não sabia nem o que era arte. Explicar arte pra mim e pros meus pais, que vieram do sertão de Quixadá pra cá, naquela época, não dava. Nenhum deixou eu continuar. Eu fiquei indo escondida. Eu dizia que ia vender verdura e ia pras atividades. Mas, num primeiro momento, nem meu pai nem minha mãe me deram apoio. Comecei a ir e comecei a voltar com os legumes pra casa. Minha mãe foi atrás de mim, chegou lá no circo e soube que eu tava indo fazer as atividades e não vender as verduras.
E aí foi que ela viu que eu tinha interesse de estar no circo, de fazer as atividades e começou a deixar. Mas a responsabilidade era totalmente daquela criança com cinco anos de idade de querer enfrentar aquela vida. Meus outros irmãos todos foram trabalhar e continuaram. Eu sou a única da família que foi pra arte, que entrou nesse mundo tão desafiador, tão difícil. Não tem como eu dizer pro meu pai que vou sobreviver de arte, sem ele saber o que era e eu muito menos, naquela época. Só seu que eu gostava de estar ali. E depois fui despertando a vontade de fazer show. Comecei a fazer show. Foi do circo que eu tirei meu primeiro cachê. Então, quando eu cheguei com o primeiro cachê e dei pra minha mãe, aí foi que ela começou a acreditar e viu que tinha um futuro ali. Mas eu fui enfrentar tudo sozinha, com cinco anos de idade, pra mostrar que era aquilo que eu queria fazer. Mas eu não tive o apoio, de início, do meu pai e da minha mãe porque não tinha conhecimento na época.
DEFENSORIA: E como foi olhar pra esse circo? Você olhou e teve um vislumbre? Foi o colorido que te chamou atenção?KATIANA: Exatamente. Quando eu tava vendendo a verdura que avistei a lona de circo, aquela lona colorida, eu nunca tinha visto, um lugar, uma cor, porque aqui eram poucas coisas e muito mato. Aí, eu, curiosa, porque eu sempre fui a irmã mais danada, fui lá no circo perguntar o que é que era. Depois disso é que eu fui despertando. Fui vendo que era massa fazer contorção, que era massa fazer trapézio.
Eu fiquei seis anos no circo. Não lembro de que data pra que data, porque logo depois a Edisca entra na minha vida, mas fiquei seis anos no circo.
DEFENSORIA: Como foi descobrir que teu corpo era capaz de fazer tudo aquilo?
KATIANA: A minha família era muito carente. A única coisa que a gente fazia na vida era trabalhar. Era sobreviver. Aqui não tinha muitas casas. Aqui era tudo mato. Na época, era bem mais difícil. E nós não viemos da família que tinha acesso a outros espaços. Eu cresci e me vi dentro do Bom Jardim num barraco pequeno com um monte de gente e a única coisa que eu fazia era sair pra vender verdura e voltar pra casa.
Pra você ter ideia, eu não sei o que é festa de criança. Não sei o que é Dia das crianças. Eu nunca tive bolo. A gente não fazia os parabéns. Não batia os parabéns dos irmãos. A gente não sabia nem quando comemorava a nossa data de nascimento, por exemplo. Eu lembro que meu irmão caçava lata e a primeira boneca que ele me deu foi sem cabeça, porque encontrava no lixo. Então, todos os nossos brinquedos de infância ou tava faltando um braço ou uma perna… Eu ganhei um negocinho que ia pra lá e pra cá, e veio só uma parte e eu ficava tentando descobrir o que era aquilo. Depois, lááá na frente, eu, criando um espetáculo pra Edisca, coloquei esse brinquedo pra fazer uma coreografia. Foi daí que tive a experiência de brincar com ele completo, depois de já mãe, coreografando, rodando o mundo todo foi que tive acesso a aquele brinquedo completo, porque eu só tinha os brinquedos quebrados ou limpos do lixo. E é muito engraçado, porque eu era muito danada. Eu subia em pé de pau, fazia muitas coisas de criança, travessuras de criança. Então, o circo foi perfeito, porque o circo adora gente atrevida, adora gente maluca. E eu fiz um pouco de tudo.
Eu sempre fui muito disciplinada, muito dedicada. Porque quando você vem da pobreza, quando você vem de uma família grande como a minha, você tem que fazer de tudo pra conseguir alguma coisa e você não pode perder tempo com nada. Desde muito cedo, a minha responsabilidade era grande. Imagine: com cinco anos de idade ter que voltar pra casa com a vasilha vazia de vender tudo? Era muito dolorido. A família era muito grande e era muita necessidade. De dividir roupa com o irmão: um, um dia, vai de calça pra escola e o outro vai com o short, quem foi com sapato na semana seguinte já não vai que é pra irmã poder ir. A gente ficou numa troca de irmandade muito grande. Somos hoje quatro homens e quatro mulheres.
DEFENSORIA: Mesmo nesse contexto de adversidade, pobreza e fome, a educação continuou?
KATIANA: Depois que eu entrei no circo, sim. Porque o circo exigia a gente estar na escola. E a mãe viu que era isso o que eu queria mesmo e começou a incentivar a gente a ir pra escola. Começou a ter aqueles dois lados: você vai fazer isso, mas vai também estudar. Porque eu só podia continuar no circo se eu estivesse matriculada. Foi quando ela entendeu que eu teria que parar de verdura pra se dedicar à arte dela e aos estudos. E, aí, não parei mais. Não parei mais.
DEFENSORIA: O que o circo te ensinou, Katiana?
KATIANA: O circo me ensinou a ter esperança. Eu poderia ser só mais uma criança sem nenhuma perspectiva de mundo, de vida. Porque crescer dentro do Grande Bom Jardim você não tem um incentivo. Você é projetado pra ser uma adolescente grávida muito cedo ou uma adolescent que vai trabalhar em casa de família ou um adolescente que vai ser mais um número na estatística dos homicídios, que é a nossa realidade. O circo me ensinou a continuar. Me ensinou que a oportunidade faz toda a diferença na vida do pobre.
DEFENSORIA: Eram esses estereótipos que te rondavam: a gravidez, a morte e a criminalidade?
KATIANA: Eram, porque vem desde a minha mãe. Ela pariu muitos filhos muito cedo. Quando a gente chega nesse contexto, fica rodeado dessa situação, dessa realidade de morar no barraco com muita gente, você olha pro vizinho e ele é mais necessitado, olha pro outro lado e o outro vizinho é mais necessitado ainda… É claro que na infância você fica alegre com tudo. Você fica alegre com um carrinho que você encontra, uma boneca quebrada. Você fica feliz com tudo, mas a gente sabe da realidade daquela época. E era mais a necessidade de fome. E aí, depois, foi se agravando com a violência mais absurda.
DEFENSORIA: Qual a importância da Edisca pra tua vida, pra tua formação de bailarina e pras tuas escolas? E depois, como você se viu não mais só bailarina mas também coreógrafa e empresária?
KATIANA: Eu passei seis anos dentro do circo, muito dedicada mesmo à vida com arte. E a Dora tava começando em Fortaleza ainda esse trabalho social. Ela foi visitar alguns bairros e escolheu o Bom Jardim pelo contexto histórico do bairro. Ela queria muito trabalhar com crianças carentes do Bom Jardim e do Morro Santa Terezinha. Ela foi até o circo e fez um convite pra levar as crianças pra fazer um teste lá. Eu fui uma dessas crianças e fiz o teste.
Mas o mais engraçado do teste foi a sala de dança. Porque na minha casa só tinha um espelho quadrado bem pequenininho. Eu nunca tinha me enxergado, me visto por completo. A gente tinha em casa aquele espelhinho da borda laranja. Foi com ele que eu tive contato toda a minha vida. Quando eu entrei naquela sala cheia de espelho, eu fiquei meia hora deslumbrada, me vendo pela primeira vez por completo. Parece uma coisa boba, mas pra mim, que nunca tive nada, foi muito emocionante. Eu nunca me esqueço desse momento.
A segunda coisa marcante pro teste foi a roupa que fui pedir emprestada. Tinha um shortinho específico, coladinho, uma blusinha coladinha e o coque. Pra eu entender o que era coque! Fui pedir ajuda e me disseram que tinha que enrolar o cabelo, que não podia deixar solto, que tinha que estar impecável, tinha que passar isso e aquilo outro. São momentos que eu sempre gosto de lembrar. Dessa valorização do simples. E da necessidade, que era muito grande.
Mas a entrada na Edisca foi o divisor de águas na minha vida. Eu entrei, criança, desesperada pra ter uma mudança. Eu pensava: “sei lá o que eu vou fazer aqui”. Balé? Eu nem sabia o que era balé! A gente nem escutava falar. Via na televisão ali, na caixinha de música. Balé era pra quem tinha dinheiro, praquelas meninas muito magras, brancas, ricas, com o piano na sala. Tá bom, então. Se iam dar balé pra nós de graça, então eu ia também. Fiz o teste e passei. Fiquei três vezes na semana lá. E fui amando. A cada aula, ia me descobrindo, me descobrindo, me descobrindo. E aí fui convidada pra ingressar num espetáculo chamado Jangurussu, porque eu tinha essa expertise do circo e no Jangurussu tinha umas coisas bem circenses, de andar em cima do camburão. E eu pensei: “vou ter que fazer meu nome aqui pra me garantir e ficar no grupo principal”. E aí não saí mais.
DEFENSORIA: Quando você entrou na sala da Edisca, viu aquele espelho enorme e se enxergou, você pensou em quê?
KATIANA: Pensei como existe um outro lado da vida que onde eu moro não mostra. Existe, eu posso acessar e, ao mesmo tempo, não chega aonde eu frequento e pra onde eu volto todos os dias, pra minha casa e pra minha rua. Pensei que eu teria essa oportunidade, mas minha família não ia ter. As minhas amigas não iam ter. É muito marcante pela escassez de tudo o que falta muito pra gente da favela, da comunidade. E você olhar pra um espelho daquele e ouvir música clássica? Daonde que eu imaginava um negócio desses!?
DEFENSORIA: Foi olhar pro futuro, né?
KATIANA: Com certeza. Aquilo foi uma projeção muito grande. De saber que existe outro lado, outros lugares.
DEFENSORIA: O Jangurussu foi o espetáculo que te deu a oportunidade de viajar?
KATIANA: Foi. Eu nunca tinha viajado. Foi a primeira vez que andei de avião e fiquei longe da família. Minha primeira viagem foi pra Brasília. Eu tinha 12 anos, por aí. Fui morrendo de medo. Até hoje, eu morro de medo de andar de avião. Sempre, não mudou. Mas é uma experiência muito grande, porque você chega em casa cheio de novidade pra contar pros irmãos, pra mãe. Foi emocionante.
DEFENSORIA: A arte já te levou pra onde? E quais lugares te marcaram mais? Essa pra Brasília, por ter sido a primeira viagem, deve ter um peso. Mas e depois disso?
KATIANA: Acredito que o mais marcante pra mim foi a primeira viagem pra França, onde nós tivemos conexões com outros projetos sociais e a gente pode fazer essa troca de contraste social muito grande, e estar ali, dançando, no palco da Unesco, um espetáculo nordestino, porque a gente estava com o “Duas estações”, contando uma história lindíssima, a coreografia lindíssima, um espetáculo belíssimo.
No fim do espetáculo, o pessoal ficou um minuto batendo palma sem parar e a gente chorava por estar ali, pisando num palco tão importante e quebrando muros pra que realmente as pessoas comecem a valorizar e entender que não é porque a gente é de projeto social que dança qualquer coisa ou faz qualquer coisa. A gente estava ali pra quebrar mesmo qualquer tipo de estereótipo que pudesse existir. E a Edisca faz esse trabalho muito bem, de levar o que é belo, o que é bom, pro mundo todo. A dança me levou pra Áustria, pra Alemanha… Todos esses lugares, por mais simples que sejam, pra mim, é muito marcante. Porque imagine: uma moradora do Bom Jardim estar representando um monte de gente que se perderam pelo caminho, que não tiveram a mesma oportunidade que eu de estar dançando em lugares que nem eu mesma imaginaria que pudesse pisar ou dançar se não fosse pela dança. Se não fosse por aquela vez em que fui lá vender a verdura e encontrei uma lona de circo colorida.
É muita responsabilidade, porque hoje eu não represento só a Katiana menina. São várias meninas do Bom Jardim que sonham através de mim.
DEFENSORIA: A gente chegou à conclusão de que, ao olhar pro espelho, naquele dia do teste da Edisca, você olhou pro seu futuro. Hoje, estando no futuro, sendo a mulher Katiana que toca um projeto social que resgata e acolhe outras histórias, o futuro chegou mesmo pra ti?
KATIANA: O futuro chegou e a gente já construiu muitas coisas. Derrubamos muros gigantes. Mas eu acho que o trabalho que a dança e que o Instituto promove ainda tem muito a ser feito. Tem que ser muito ainda mostrado, falado e idealizado. Mas o futuro que a gente está construindo está sendo bem lindo, bem de impacto, bem forte pro que a gente quer chegar. Porque a minha preocupação hoje é oportunizar os espaços que oportunizaram pra mim pela dança. Continuar multiplicando tudo. Eu quero dar mais. Eu acho que o que eu faço hoje ainda é muito pouco. Eu sei que eu posso fazer mais. Com certeza.
DEFENSORIA: Como foi entender que você não era mais só uma bailarina e sim uma agente de mudança social?
KATIANA: Quando a gente entra na Edisca, quando a gente dá os primeiros passos, quando a gente faz a primeira viagem, ali a gente já deixou de ser só bailarina, sabe? Ali, a gente está sempre se olhando, pra onde tenho que voltar e se preocupando em dar aula, planejar a aula seguinte, pensar no espetáculo seguinte.
Eu sempre estive rodeada de gente que sabia criar e produzir coisas extraordinárias, como a Dora e a Edisca proporcionam. E a Edisca forma muito bem isso: não só bailarinos, mas prepara pessoas pra vida. Toda a experiência que eu tive lá, eu estava lá pra sugar tudo. Eu adorava quando a Dora falava com a gente, adorava as reuniões, as criações e o que ela falava, os feedbacks. Porque era a injeção de ânimo que a gente tinha pra saber que a gente tinha que ganhar o mundo, que a dança era pra gente, que a gente tinha que buscar sempre o melhor. Alguém dizer isso pra gente quando a gente saiu de um lugar de negação?
Aquilo me fortaleceu muito de fazer todo esse caminho dentro da Edisca: aluna, professora, bailarina, coreógrafa, fazer parte da gestão e sair e poder repassar isso com segurança. Porque é isso o mais bonito que a Edisca faz: não forma só bailarinos naquele momento de criar grandes espetáculos e dar boas aulas, mas te projeta pra vida pra dizer que a gente está preparado pro que a gente quiser ser. Se hoje eu quiser ser advogado, eu vou ser um advogado diferenciado. Uma veterinária diferenciada. Um astronauta diferenciado. Porque a Edisca te prepara pra isso, principalmente de uma história que poderia dar tudo errado, como a minha. Eu poderia ser nada e ter outros caminhos, como muitas das minhas amigas tiveram. Mas escolhi a arte.
DEFENSORIA: A história de todos nós é atravessada por várias pessoas. E muitas ficam pelo caminho. Ou porque escolhem tomar outros rumos ou porque a vida se encarregou de dar outra função. E o que elas deixaram pra ti?
KATIANA: Sim. Todas as pessoas foram importantes na minha trajetória. Depositaram muito em mim o que elas não puderam ter. Ou as pessoas que não puderam continuar. E eu falo muito dessas pessoas que hoje estão fazendo coisas diferentes na vida e hoje, quando me olham, me agradecem por ter continuado e falam que queriam ter outra perspectiva de vida e que queriam poder voltar no tempo.
Ouvi isso de um ex-bailarino esses dias. Eu sou muito preocupada se o que eu estou fazendo realmente impacta. E ele me disse que ficava feliz porque eu continuei e representando todo mundo que não conseguiu. É muita responsa pra mim, sabe? É muita responsa! Mas dá um gás também total. Mas também me deixa preocupada, porque é muito incerto viver de arte. Viver de arte é muito difícil. Produzir arte no Ceará é muito difícil. E quando você abraça o social imagine o desafio que é produzir algo que poderia ter um olhar mais sensível. Tem que colocar cada vez mais força, porque a gente não tem um trabalho fortalecido no terceiro setor.
DEFENSORIA: Que dificuldades são essas? A gente tá falando só de dinheiro?
KATIANA: O mais desafiador, quando você entende da importância do trabalho da arte e da cultura, é a valorização, porque muita gente depende disso. Mas por que não se é olhado da maneira que deveria ser quando entregamos tanto resultado e fazemos tantas transformações? Tem produções lindas aqui no Ceará! Tem pessoas incríveis aqui! O que falta pra impulsionar ou valorizar a arte, principalmente a arte local, nossa?
Tem muito o que ser falado, mostrado e valorizado, porque são iniciativas artísticas simples, trabalhos que é manual, trabalho de dança, trabalho de cinema, que pode ser muito valorizado, muito impulsionado e não se é. Aí, quando eu trago pra fazer arte no bairro, no Bom Jardim, você imagina a dificuldade que é. E eu não tô falando de arte na nossa centralidade de Fortaleza. Estou falando de arte no contexto periférico. Produzir isso na favela. Na comunidade do Bom Jardim.
São 218 mil habitantes no bairro. São seis bairros juntos do Bom Jardim e que formam esse Grande. Essas pessoas que produzem arte, cultura, do que essas pessoas sobrevivem? Como elas continuam seus projetos e suas vidas? Como sustentam suas famílias? Porque eu estou falando enquanto instituição, mas eu também sou artista. Eu também sou pessoa física e sei das dores que chegam a mim pra pedir ajuda, por exemplo.
Quando eu trago o social pra dentro, quando eu fundei a instituição, quando isso foi fundado, eu não tinha sequer ideia do do desafio que é manter uma estrutura dessa oferecendo tudo o que a gente desenvolve. Mas a gente oferece porque a gente ama fazer isso, a arte, a dança. A gente quer muito, independente de condição financeira. Mas hoje não é só mais a Katiana. Hoje são 840 educandos que necessitam dessa ajuda. E dar minha casa pra se transformar nesse espaço de potência, de transformação, de impacto, onde respira tudo isso, é desafiador quando a gente fica se submetendo a edital ou em iniciativa nossa de criar uma blusa pra vender, de fazer uma campanha pra arrecadar dinheiro, pra colocar comida…
DEFENSORIA: Como o Instituto surgiu? Quais projetos vocês desenvolvem no Instituto?
KATIANA: O Instituto nasceu da necessidade da gente transformar a realidade de outras crianças que vêm do mesmo lugar da Katiana. Quando eu resolvi abrir as portas da minha casa pra dar essa oportunidade, eu queria que tivesse dentro desse espaço tudo o que a Katiana não teve. A Katiana não teve a comida, a Katiana teve que atravessar a cidade pra acessar o balé clássico, a Katiana deixou de muitas vezes de ir pra escola pra poder ir trabalhar. Então, o Instituto é, de todo modo, uma projeção da minha história. E eu não quero que isso se perca.
Aqui, o carro-chefe é a dança e, depois, a alimentação. Todas as crianças recebem o almoço e o jantar. E, logo em seguida, elas têm aula de Português e Matemática, porque eu não tive esse apoio da escola, esse incentivo de estudar. E, daí, eu fui entendendo que a responsabilidade foi aumentando. Comecei com 140. Fui pra 500, fui 600, 700 e, hoje, o Instituto atende a 840 educandos. E a necessidade e a procura do bairro é tão imensa que eu resolvi trazer o esporte. Então, hoje, essas crianças também têm aula de futebol, aula de capoeira, karatê, muay tai, jiu jitsu, que é a coisa mais linda do mundo quando eu vejo essas meninas aí espalhadas no Bom Jardim, fazendo as atividades, porque eu sei da importância do que é a simplicidade da gente dar, da gente oferecer, da gente abrir as portas.
A partir dessas atividades culturais e esportivas, nós estamos, com certeza, transformando o Grande Bom Jardim. E eu não falo só da vida dos alunos do Instituto. Eu falo da mãe, do pai, do irmão do Bom Jardim. Hoje somos uma referência dentro do bairro porque acreditamos no Bom Jardim. É o lugar onde nasci, cresci e moro. Tem 39 anos que estou nesse bairro e é um bairro que tenho muito amor e carinho, e é aqui que quero continuar esse impacto desse lugar tão potente e tão sagrado e tão importante pras famílias.
DEFENSORIA: Pra quem não conhece o Instituto, queria que você explicasse como ele se mantém e há quanto tempo existe.
KATIANA: O Instituto se mantém de doações. Começou com doações e hoje também nos arriscamos através editais pra poder a gente concorrer a algo mais estruturado pra manutenção do time de todo o Instituto e as atividades acontecerem. E de iniciativas que a gente vai criando de sustentabilidade, porque o maior desafio do terceiro setor hoje é a sustentabilidade.
Como o Instituto tem essa responsabilidade, esse compromisso de não deixar faltar as atividades essenciais, que é a alimentação, que são as iniciativas da criança e dos pais estarem aqui dentro, é essencial que a gente busque iniciativas de sustentabilidade. Aí, a gente vai pro bazar, a gente vai pra rifa, faz uma feijoada, vende uma blusa, faz alguma coisa pra somar esse dinheiro e não deixar faltar nada. Nós temos alguns programas muito importantes de alimentação pras nossas crianças e a gente vai driblando essas dificuldades, que são gigantescas. Porque a nossa principal preocupação é não deixar faltar nem alimentação nem as atividades.
O Instituto vem desenvolvendo esse trabalho há sete anos. Então, há sete anos, nós estamos aqui no bairro, onde é difícil o acesso de empresários, é difícil o acesso midiático, é difícil o acesso a tudo. Então, isso nasce a partir de políticas públicas criadas por nós mesmos. Ele se projetou numa proporção muito grande, mas foi na perspectiva de como fazer muito com pouco. Essa é a expertise do Instituto, que é fundamental e mantém a gente de pé. Porque independente de qualquer coisa nós vamos acontecer. Mas também é muito importante que o primeiro e o segundo setor cheguem e vejam que com toda a zoada que nós já fazemos por Fortaleza adentro já sabemos da importância que é esse lugar. E não podemos deixar de existir.
Uma coisa eu garanto: enquanto Deus me der vida e saúde, não vou deixar que as atividades encerrem. Nem que seja ali um pão com café e manteiga de novo, como nós começamos, não vai faltar. É claro que você oferecer um frango, uma proteína, uma carne, um arroz, um feijão, é algo espetacular, que é isso o que estamos oferecendo hoje. Mas se, um dia, a gente não tiver, a gente volta a fazer o que a gente sabe fazer melhor: que é fazer muito com pouco.
DEFENSORIA: Se eu sou pai e quero que meu filho seja acompanhado pelo Instituto, faço o quê? Tem inscrição? Tem seleção?KATIANA: A gente tem um processo de matrícula, um período de inscrição. E esse período de inscrição acontece a cada dois anos. A criança precisa demonstrar ser carente, de escola pública e ser moradora da comunidade. E a gente vai fazendo uma triagem. Eu não trabalho com seleção. É por inscrição. Abri 200 vagas? Essas 200 vagas têm que ser preenchidas. Não faço teste de aptidão pra ver se a criança tem talento pra dança. Por quê? Porque o Instituto não é esse lugar em que a gente vai trabalhar a técnica do balé. A gente vem pela necessidade de essa criança estar aqui e a gente transformar essa criança. Porque ela pode adorar o balé, mas ela pode adorar a aula de matemática, a aula de português, a aula de jiu jitsu, a aula de futebol… É a partir disso que a gente faz um mapeamento.
Não faço seleção nem faço trabalho competitivo com dança. Não venho desse olhar porque acho que a vida já é muito competitiva, já é muito injusta e já é muito seletiva, principalmente com quem vem da comunidade. Então, a gente vem mais desse lugar de abraçar e ter o tempo de inscrição até preencher o número de vaga. Preencheu? Fica dois anos sem abrir inscrição porque o trabalho é muito grande de manutenção. Se eu pudesse, eu estaria aqui com mil, duas mil crianças. Mas não tenho condição e vou abrindo a cada dois anos nova seleção.
DEFENSORIA: E o corpo técnico do Instituto, como se dá? Se eu quiser ser voluntário, é possível?
KATIANA: A gente trabalha muito com voluntariado. Porque o Instituto nasceu de voluntariados. Então, tem muita gente aqui que presta serviço voluntário. Nós temos uma plataforma no nosso site que a pessoa preenche e informa que tipo de colaboração pode dar, por quanto tempo etc. Tem gente que quer se dedicar à contação de histórias, que quer se dedicar ao administrativo… A gente tem todo esse acompanhamento e consegue trazer esse pessoal pra perto do Instituto. Muitas mães também se prontificam a fazer uma sopa, a fazer uma limpeza… São diversas áreas de possibilidade. Da contabilidade aos serviços gerais.
Eu sempre falo que no Instituto você pode fazer tudo. Você pode ajudar de diversas maneiras: compartilhando vídeo, seguindo, fazendo trabalho voluntário, doando fisicamente, indicando pra um amigo ou empresa. De qualquer maneira você pode ajudar a instituição.
DEFENSORIA: Em 2017, vocês participaram de um quadro do Caldeirão do Huck. O que mudou desde então?
KATIANA: Olha, a visita do Luciano Huck no Instituto, que na época não era nem Instituto e sim apenas a casa da Katiana que atendia meninas carentes do Bom Jardim, deu uma vitrine no Brasil todo e projetou muito na questão muito de como é que um trabalho desse trouxe o Luciano lá do Sudeste e as iniciativas locais não estavam comigo mesmo com a gente gritando e pedindo socorro pra não fechar. Aí, o Luciano vem, faz a transformação, deixa isso daqui a coisa mais linda do mundo, melhora, pra gente aumentar o número de educandos e, ao mesmo tempo, joga uma responsabilidade muito grande, porque em nível nacional fez com que todo mundo voltasse os olhos pra história da Katiana. E fechamos muitas parcerias importantes, muitos amigos importantes.
Foi muito positivo nesse sentido de que “o primeiro setor agora sabe que eu existo e os empresários sabem que eu faço um trabalho”. Eu acho que foi fundamental a gente ter projeção nacional, sabe? E voltar, né? Minha história repetiu duas vezes e, na segunda vez, o Corpo Mudança foi lá dançar no palco do Luciano Huck. Imagina a responsabilidade que é do Corpo Mudança, do Instituto, a alegria do Bom Jardim. O Bom Jardim nunca tem nada e, de repente, uma menina traz o Luciano Huck para o Bom Jardim inteiro. Foi uma atração. Um Oscar pra nós.
DEFENSORIA: Você disse há pouco que tudo o que você pensa pra cá é sempre na perspectiva de oferecer pros educandos e educandas coisas que você não teve: o espelho, a comida, a aula… Quando você olha pra essas crianças, você enxerga o quê?
KATIANA: Eu enxergo a Katiana. Eu enxergo um futuro. Eu enxergo toda a minha dedicação e meu esforço que eu tive lá atrás. Todo santo dia, eu agradeço a Deus por tudo o que eu passei e por onde eu andei, sabe? Tudo, tudo. Porque reverbera em tudo. Reverbera em cada projeto que eu aprovo, em cada criança que faz aula, em cada reunião do meu time, em cada dificuldade que a gente enfrenta.
Eu sou muito preocupada por que a criança não tá fazendo aula, por que ela não tá vindo. Eu sou fissurada. Eu tenho pavor de quando uma criança faltou duas ou três vezes. Eu já fico: “liga, pergunta o que ela tem, pergunta o que ela quer, o que ela tá precisando…”. Eu fico doente quando eu perco uma aluna. Doente. Doente mesmo. Fico incomodada demais. Porque sei que pode estar acontecendo alguma coisa. Eu sei que aquela criança pode estar com fome em casa, porque a mãe pode estar desempregada ou a mãe pode estar sendo violentada. A realidade das nossas crianças e das famílias do Bom Jardim é essa.
DEFENSORIA: E essas situações chegam pra vocês?
KATIANA: Chegam. Chegam. Nós temos atendimento psicológico no Instituto e a gente não tem estrutura depois do expediente pra nada, de tanto absurdo, de tanta violação de direitos que as nossas crianças enfrentam. Do tanta violência doméstica que as mães passam dentro de casa, que as crianças passam dentro de casa.
DEFENSORIA: E como vocês administram isso? Porque, em tese, essa não é uma demanda do Instituto e sim política pública.
KATIANA: Olha, quando eu falo que o Instituto é importante, eu tô falando que ele deixou de ser só a dança, só o futebol, só a aula de Português e Matemática. Pra você ter uma ideia, a demanda de atendimento psicológico, quando eu trouxe a psicóloga aqui pra dentro, foi porque é tanta necessidade, é tanta gente precisando de ajuda, que eu perdi vizinha porque não teve o atendimento de direito do remédio pra depressão. Aí, você imagina quantas famílias me procuram pedindo pelo amor de Deus por um atendimento com a nossa psicóloga. Eu tenho tanto demanda interna quanto da comunidade. E, aí, eu atendo desconhecido, eu atendo pai desconhecido, mãe conhecida, aluno daqui de dentro. Mas é porque eu não posso negar. Eu não tenho como negar.
Então, o Instituto é o lugar onde as pessoas vêm pedir vale, consulta, encaminhamentos, pedidos de socorro do básico. De uma consulta no médico no posto de saúde. E eu falo em tom desesperador porque dói, gente. Eu não dou mais só aula de dança. Eu sou responsável por dizer “não se mate não, pelo amor de Deus, que nós vamos conseguir”. Eu perdi ontem a mãe de uma aluna porque se matou. Suicídio! É muito sério. E a gente sabe que é sério em todas as classes. Mas você imagina uma pessoa depressiva na favela, na comunidade, que não tem pra onde ir. Me diga! Me diga! São coisas que eu não me acostumo. Eu não consigo engolir. E o Instituto tá aqui, nem que seja pra eu ouvir. Eu não sou psicóloga, mas eu escuto, eu encaminho, eu dou um jeito, eu peço uma coisa, tiro do próprio bolso. Muitas vezes, muitas vezes, a gente recebe depoimento do tipo: “vocês salvaram não só a vida da minha filha, mas a mim.”
O que eu falo sobre esse lugar de arte e de potência, eu tô falando da oportunidade desse lugar manter as portas abertas. Porque gente, pra gente, pode ser pouca coisa. Mas pra essas mães, pra essa comunidade, é muito. É muito. Porque uma hora que ela passa aqui dentro, ela não vai estar em casa, sendo violentada. Ela vai ter o que comer, ela vai ter o que estudar, qualquer coisa. Não podemos fechar os olhos pra isso. Não dá.
DEFENSORIA: A gente nota que você se emociona…
KATIANA: Sim. Porque eu não tive. Eu não tive. E o que eu não tive eu tenho que devolver. Eu tenho que usar, pelo menos, um pouquinho do que é a história da Katiana pra dar. E eu não quero dar de qualquer jeito. Eu quero dar do jeito que tem que ser dado. Eu quero dar igual pra todo mundo.
DEFENSORIA: Os educandos e as educandas do Instituto têm um perfil socioeconômico, como você já falou que considera na hora da triagem. Mas existe um perfil racial também. Isso impacta na dinâmica de vocês nas atividades?
KATIANA: Demais. Eu morro de medo de alguém não se sentir incluído nas ações do Instituto, mas principalmente que perfil a gente está orientando pra que essas pessoas saiam daqui sabendo respeitar os espaços e as pessoas. Eu tenho muita preocupação. Trouxe uma assistente social e uma psicóloga justamente pra fazer esse trabalho, porque já é muito forte a violência que acontece dentro do território. E não se pode deixar matar por ser preto ou por ser gay. Não dá! A gente está fazendo esse trabalho de conscientização já desde pequenininho, justamente pra que essas crianças cresçam sabendo respeitar todo mundo, todas as cores e todas as pessoas. É fundamental esse diálogo e o Instituto está muito preocupado com essa questão racial. É obrigação nossa trabalhar isso toda hora, em todos os momentos.
DEFENSORIA: Qual futuro você imagina pro Instituto? A estrutura hoje já é outra do que era no início. E agora? Qual é o sonho?KATIANA: O sonho aumenta mais. Primeiro, nós temos o grande sonho de construir o que a gente tem chamado de nossa Disney, que é a nova sede. Eu acho que esse é o próximo passo. Queremos trabalhar a questão dos pais, da saúde, da profissionalização dos jovens. Estamos pensando num novo formato, pra que o Instituto possa alcançar mais beneficiários, onde as pessoas possam estar preparadas pra concorrer como qualquer outra pessoa capacitada pode concorrer. Também quero trabalhar muito a questão da mulher. Um lugar onde eu possa acolher todas essas necessidades a partir de uma escuta que estamos fazendo no Grande Bom Jardim. Mulheres, jovens e comunidade como um todo, eu quero mais dentro da instituição.
DEFENSORIA: Como você e o Instituto lidam no dia a dia com o estigma do Grande Bom Jardim no sentido de fazer com que os meninos e meninas atendidos compreendam a importância do trabalho, no sentido de atrair investidores e no sentido de mostrar pra comunidade como um todo que o trabalho desenvolvido aqui é de qualidade?
KATIANA: Eu criei uma hashtag que é: #DoBomJardimParaOMundo. Quando eu entendi a minha força como figura do território, dessa menina que viajava o mundo todo mas era moradora do Bom Jardim, eu comecei a legitimar esse lugar. Porque eu não posso nem tenho o direito de negar o lugar onde cresci. Minha mãe construiu a nossa família neste lugar. Eu tenho um respeito muito grande.
Eu comecei a mostrar o lado bom do Bom Jardim. O lado ruim todo mundo já sabe. As páginas policiais já mostram. Mas eu, como artista, como moradora, como criadora de espetáculos, vestia camisa do bairro e comecei a projetar o bairro dessa maneira mais positiva, mais leve. Porque aqui tem pessoas trabalhadoras; pessoas que atravessam a cidade pra ganhar seu ganha-pão. Grandes artistas, grandes poetas, grandes escritoras. Pessoas do bairro. Então, não dá pra criar um rótulo e enfiar goela adentro pra dizer que o Bom Jardim é só violência.
E o trabalho que a gente tá fazendo começa a partir dos alunos do Instituto. A gente fala: “você precisa dizer que é do bairro, precisa defender seu bairro, porque é daqui que você tem que projetar sua vida”. É você legitimar e entender esse processo e a gente começar a reeducar que não é só esse lugar de homicídio, de extermínio, de droga. Eu amo o Bom Jardim. É o lugar onde eu crio meus filhos. E não pretendo sair de jeito nenhum.
DEFENSORIA: Como a sua mãe lida com o Instituto, já que na infância ela teve uma presença muito forte, passou fome e vê você hoje garantindo isso pra tanta gente?
KATIANA: A minha mãe é muito preocupada com o Instituto. Ela bota a cadeira na calçada e fica observando todo o movimento dos alunos. Aí, ela percebe o dia que é mais fraco e o dia que é mais forte. Ela é muito visionária. É uma empreendedora nata. E ela tem muito medo de que eu não consiga realmente fazer o que me propus. Ela lembra: “dê comida pro povo, porque você não tinha não”, “não deixe de entregar a cesta básica não”, “esse povo já comeu, Katiana?”, “esse povo tá fazendo aula direito, Katiana?”, “esse povo tá tratando todo mundo bem?”. Ela sempre tá ali. E mãe, quando fala, é Deus falando. Ela é muito importante pra isso aqui. Ela sente tudo, mesmo não estando aqui dentro. Quando eu vou lá na casa dela, só de ela olhar e ouvir minha voz ela sabe como foi o dia foi pesado. Ela sente. E trouxe minhas irmãs todas pra trabalhar aqui dentro. Eu tirei todas dos empregos e trouxe pra linha de frente, pra gente não parar.
DEFENSORIA: Como vocês lidam com essa oscilação de dias mais fortes e mais fracos? A questão das facções influencia o funcionamento do Instituto?
KATIANA: Total. Influencia demais. Eu morro de medo de perder aluno. Então, quando tá faltando, já vai um time de ligação e visita. Como é tudo próximo do Instituto, a gente sabe as casas de todo mundo. E já alerta. A minha pergunta sempre é: “por que tá faltando?”. Alguma coisa grave tá acontecendo. Porque eles não faltam. Só se estiverem doentes mesmo.
E tem essa questão da limitação territorial também. O Instituto hoje consegue circular, mas a gente sabe das dificuldades do que é os educandos circularem. A gente consegue, mas as comunidades ao redor nem tanto. Mas quando se fala do Instituto, do nosso território, é bem tranquilo. Existe um respeito muito grande, porque eu trabalho com os filhos e parentes dessas pessoas. Então, a gente consegue ter esse acesso nas comunidades e eles terem esse acesso aqui. A gente vai tentando esse diálogo. Tentando cada vez mais abrir, porque vai ficando mais delicado, vai ficando mais restrito, e a gente conversa: “oh, tenho que entregar uma cesta ali, tenho que passar pra cá”. E, assim, a gente vai liderando.
DEFENSORIA: E quando você perde um aluno?
KATIANA: Quando eu perco, é triste. É triste. Eu insisto até o último momento. Mas quando a família resolve não dar mais continuidade é triste.
A gente perde muito aluno de uma idade mais infantil porque ou a mãe tem que trabalhar ou ninguém pode vir deixar ou o aluno fica na casa da avó ou o aluno fica só em casa. Esse é o histórico. Nós temos família de três irmãs aqui que elas têm nove anos e ficam sozinhas em casa. Porque a mãe tem que trabalhar. Aí, como faz? Não faz.
DEFENSORIA: E quais as histórias de resgate te vêm à mente?
KATIANA: Geralmente, quando tá nesse caso, sou eu quem tenho que ir. Vou, falo com a família e faço o diálogo. Falo da importância que é o filho, porque já não tem mais que pensar na mãe, pra ter uma perspectiva de mudança se ela quiser se erguer desse lugar sem projeção. Porque eles não têm projeção. São comunidades e famílias que não têm um olhar de esperança. Já se é prometido muito pra essa comunidade.
Quando não é feito, quem vai garantir que esse menino vai ter um futuro na vida? Quem vai dizer pra essas famílias, que todo mundo vai lá e promete a cesta básica, promete uma consulta, promete isso, isso e aquilo outro, promete passar calçamento, promete mil coisas e a família continua lá, naquele mesmo lugar, sem saneamento básico, morando de maneira improvisada, o aluno não vai pra escola, acontece aula e não acontece, faz isso e não faz aquilo, aí eu chego lá, dou uma injeção de ânimo, falo que o trabalho do Instituto é assim, mas quem garante pra essa mãe? Ela vai se perguntar. Ela vai dizer: “eu tenho mais o que fazer, tenho que trabalhar e meu filho também”. É uma realidade. É um desafio. É um desafio a gente trazer as crianças. É um desafio manter as crianças dentro da instituição. Tudo é muito delicado. Tudo é de muita energia. Você tem que ter muita energia pra fazer isso. É uma missão. Se não for uma missão, se não for amor que a gente sente aqui pra desenvolver isso, eu não sei o que é.
DEFENSORIA: Você disse que o circo te ensinou a ter esperança e a Edisca te ensinou a voar. O que você está ensinando pra esses meninos e meninas?
KATIANA: A serem valentes. A serem valentes. O mundo pede isso. Além da Katiana que teve a esperança e da Edisca, que me projetou pra voar, é que eles sejam valentes com a vida. Que estejam preparados pra realidade.
E eles estão mais do que eu. Eles estão mais corajosos do que eu lá atrás. Acho que eles estão mais preparados pra realidade de hoje. Porque são pessoas mais abertas. São jovens que têm muita energia. Que não sofreram tanto da maneira que eu sofri, porque eu tive muita necessidade e hoje já é mais fácil ter acesso a tudo. Na minha época não era. Na minha época, eu pegava seis ônibus. Três pra ir e três pra voltar. Hoje em dia, tem tudo mais fácil. Hoje, tudo mais próximo. Tem tudo aqui. Então, eles estão bem mais preparados.
DEFENSORIA: Eles têm essa consciência, Katiana? Como é esse diálogo no dia a dia, já que muitos devem chegar aqui desesperançosos? Como construir essa relação de confiança?
KATIANA: Porque a gente dá. A gente dá a melhor comida. A gente dá a melhor aula. A gente dá a melhor roupa. A gente cria o melhor espetáculo. A gente dá. Dá. A gente não faz um trabalho meia boca. Eu não dou mais água do que suco. Eu dou o suco. Eu dou o melhor. Eu dou o melhor iogurte, eu dou a melhor carne, eu dou o melhor arroz, eu dou o melhor tudo. Eu dou o melhor tudo. Eu não aceito dar menos que nada disso. Eles acreditam nessa construção porque eu dou. Porque eu faço. E eu não aceito que quem esteja à minha frente não fizer.
Esse é o espírito que move o Instituto. E hoje é o espírito que mantém isso daqui. É porque a gente dá. A gente faz. Eu não brinco de fazer. Eu faço. Eu dou. E eu dou o melhor. O que eles querem, eu dou o melhor. Melhor aula, melhor comida, melhor tratamento. E, se eu errar, eu peço desculpas. Se não foi bem atendido, eu vou lá e peço desculpas. Eu mesma peço desculpas. Eu não deixo ninguém atravessar nessa hora. Na hora de pedir desculpas, sou eu que vou.
SERVIÇO
INSTITUTO KATIANA PENA
ONDE: rua Mirtes Cordeiro, nº 3.147, no bairro Granja Lisboa (no Grande Bom Jardim).
CONTATO: 85 9.9277.9793.
Defensoria Pública do Estado do Ceará
Av. Pinto Bandeira, nº 1.111, Bairro Luciano Cavalcante, Fortaleza – CE, CEP 60.811-170.
Telefone: (85) 3194-5000
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