“Quando a pessoa comete um delito, ela precisa de presídio ou de política pública? No presídio, ela é duplamente marginalizada. Então, nós não estamos superando a violência; nós estamos alimentando a violência.”

Gabriella Pinna
79 anos.

Freira e membro da Pastoral Carcerária.
Nascimento: Ilha de Marselha (Itália).
Atuação: Brasil (desde 1994, estando em Fortaleza desde 2007).

“A gente dava a Palavra pra falar da dor”

Foi por uma fresta de porta que as cores do painel reivindicaram ser a capela – e não uma sala de burocracias – o lugar no qual as confissões precisavam ser feitas. Afinal, uma freira iria falar. Necessitava estar rodeada de quem era gêmeo de fé. Foi, então, diante de santas e santos que Gabriella Pinna professou palavras de vida. Mas também de apreensão. Todas nascidas dos 29 anos nos quais a irmã está no Brasil e leva algum alento a quem lota o sistema prisional.

Dentro de um hábito azul, sandália papete preta, relógio digital, anel de coco e cordão de prata em cruz, a mulher, cujo nome de batismo é Anna Maria Pinna, primeiro acanhou-se. Inúmeras foram as vezes nas quais se disse envergonhada de posar para o fotógrafo ZeRosa Filho, a quem ofereceu feições acanhadas. “Não estou acostumada”, contrapunha, mas cedia aos nossos argumentos de darmos um rosto – o dela – a uma causa – a assunção de alguma bem-aventurança aos que, no cárcere, carecem da mais basilar das felicidades.

Apesar das quase três décadas vividas aqui, entre Maranhão e Ceará, o sotaque italiano – da ilha de Sardenha – não abandonou Gabriella Pinna. Ela é feita de sorriso e olhar forte. De silêncios e timbre firme, que não deixa margem para dúvidas sobre o entendimento dela de mundo, atravessado por crenças de um mundo melhor. Por isso, ela fala em Cristo, o salvador no qual acredita e por intermédio de quem modifica vidas.

Na sede da Pastoral Carcerária no Ceará, no Centro de Fortaleza, a freira recebeu a equipe da Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE). Ao entrar na capela, mirou o painel de cores vivas, no qual a inscrição “Maria, mãe da Igreja” estava gravada no alto. Reverenciou o altar, ladeado por um crucifixo magro. Orou em genuflexão. E acenou ao sacrário, banhado por uma luz milimetricamente projetada do teto da edificação.

Um a um, Gabriella Pinna reconheceu os rostos e os nomes na parede. Na fileira de cima, nove divindades. Ao centro, Maria, três anjos e um Menino Jesus de pele mais escura do que se convencionou na nossa cultura ocidental, afeiçoado mais aos detentos em prol dos quais a irmã intercede melhor do que aos gestores de políticas com os quais ela é obrigada a lidar. Embaixo, outros 16 sagrados. Sobre todos, a mão de um Deus estirada no envio de um Espírito Santo em formato de pomba branca descendo dos céus.

A irmã aponta, então, para São Francisco, o terceiro retratado mais próximo da “Mãe da igreja” na pintura, senta no banco cedido pelo pároco do lugar e dali não levanta antes do fim da conversa, de quase duas horas numa manhã de quarta-feira do fim de um agosto calorento. Aos 79 anos, molha as palavras apenas uma vez no ínterim da chegada ao prédio ao fim da entrevista. E justo quando a tecnologia, traiçoeira como é, força uma pausa.

Lúcida dos direitos (próprios e, em especial, dos outros), Gabriella Pinna encontrou contrastes nas unidades prisionais por onde passou. Foi da fome ao calor humano genuíno. Testemunhou de tudo, especialmente do quão a prisão não precisa ser fim. “A gente dava a Palavra pra falar a dor”, revela a religiosa.“Quando a pessoa comete um delito, ela precisa de presídio ou de política pública? No presídio, ela é duplamente marginalizada. Então, nós não estamos superando a violência; nós estamos alimentando a violência”, acrescenta.

Confira a entrevista.

DEFENSORIA: Irmã, eu gostaria primeiro que a senhora se apresentasse e falasse um pouco de como foram os anos iniciais da sua vida, lá na Itália…

IRMÃ GABRIELLA: Então, eu sou italiana. Há 28 anos que estou aqui no Brasil e há 15 anos estou em Fortaleza. Como cheguei aqui? Digamos que vou voltar na minha infância. Eu nasci numa família católica, praticante e desde a minha infância sempre acreditei em Deus e tinha um amor todo especial por Jesus. Me lembro que a gente brincava num espaço da Igreja quando criança. Toda a nossa vida era família, escola e Igreja. A gente brincava num espaço da Igreja e, de vez em quando, abria a porta e dizia: “tchau, Jesus, tô aqui brincando.”

Lembro que eu tinha oito anos e eu fazia parte do grupo “Os amigos de Jesus: infância missionária”. Eu me empolgava tanto! Era uma senhora de idade que nos acompanhava e nos contava tantas histórias da África. Aí eu me empolguei tanto que eu disse: “quero ir para a África”. Essa coisa me acompanhou. Com meus 15 anos, eu entrei na Congregação das Pias Irmãs da Redenção, cuja missão é a mulher em situação de vulnerabilidade, de rua, de prostituição, de prisão. Mas a minha ideia era sempre a África.

Fiz toda a minha formação, completei meus estudos e comecei a trabalhar com adolescentes. Era uma unidade de acolhimento de adolescentes em situação de vulnerabilidade em parceria com a vara da infância e da juventude na Itália. A uma certa altura, me propuseram o Brasil. Eu esperava a África, mas me propuseram o Brasil. Então, eu cheguei em São Luís do Maranhão. E lá comecei a visitar, de vez em quando, o presídio, sobretudo o presídio feminino, mas também o masculino. No entanto, não tínhamos um projeto lá.

A gente morava numa periferia. Periferia mesmo, muito pobre, onde o impacto muito grande foi ver pessoas passando fome. Mas fome mesmo! Eu mesma, em poucos meses, perdi sete quilos. Não conseguia comer vendo tanta gente sem comer. Depois, tive que rever essa situação porque se não comesse ia morrer e não faria mais nada. Foi uma coisa muito impactante. A pobreza. A miséria.

Eu me inseri porque já tinha algumas das minhas coirmãs que trabalhavam com meninas de rua, com adolescente grávida, com criança recém-nascida, e a gente continuou organizando projetos em favor de criança, adolescente e jovem. Um projeto muito lindo foi de oferecer uma bolsa para 14 jovens que trabalhavam conosco pudessem frequentar a faculdade que, naquela época, era muito cara e não era acessível a jovens de periferia de classe pobre. Mas amigos da Itália nos ajudaram e, graças a Deus e a eles, tivemos formados psicólogo, assistente social, enfermeira… Cada um foi escolhendo o que queriam fazer e eles foram nos ajudando no projeto em favor de crianças e adolescentes mulheres.

Foi, sobretudo, em 1997, quando a Igreja Católica lançou a campanha da fraternidade, como lança todos os anos, pra olhar mais de perto a situação das pessoas presas, que eu passei a visitar os presídios, sobretudo o presídio feminino.

DEFENSORIA: E o que foi que a senhora encontrou nesse universo?
IRMÃ GABRIELLA: Olha, muita miséria. De fome, de falta de água, de kit de higiene. De tudo. Porém, também há um contato muito humano com essas pessoas presas. A gente entrava na cela, a gente sentava na cama, a gente sentava no chão. E lá era escuta, e lá era conversa, era diálogo, era oração, era momento de louvor, de leitura da Bíblia, de partilha de vida, de tantas histórias.

Eu me lembro de uma mãe. Ela estava presa por tráfico de drogas. Pouca, porque a maioria das mulheres que está dentro do presídio elas não são traficantes. Na verdade, é aquela pouca quantia. São pouquíssimas aquelas que são verdadeiramente envolvidas no grande tráfico. Tinha essa mulher e ela tinha um único filho, de 11 anos, com hepatite já grave. Hepatite C. Essa criança, em prática, ficou sozinha. Aí, um dia, ela soube que a criança estava doente. Aí, eu fui no bairro onde morava essa criança, que morava com o companheiro dela mas que não cuidava da criança, e a criança não estava porque já estava na UTI. Aí, eu fui na UTI, o diretor do hospital me deixou entrar.

Eu fui, ele estava em estado vegetativo e mesmo assim eu fui falar com ele, dizer que tinha ido visitar a mãe, que a mãe mandava um grande abraço pra ele e que a mãe queria muito bem a ele. Mas o médico me disse que não sabia se ele chegava ao dia seguinte. Então, eu fui ao presídio pra falar com o diretor pra ver se liberava a mãe pra visitar a criança. Mas não tinha carro. Eu disse: “não tem problema. Se você me autorizar, eu levo essa mulher no nosso carro”. Aí, vieram dois agentes penitenciários e fomos. Quando chegamos lá, eu desci a escadinha do hospital e o policial que estava ali me sussurrou: “está morto, já faleceu”. A mãe ouviu e deu um grito. Aquilo me deu uma coisa… Chegamos lá e a criança estava dentro de um saco de lixo preto, já fechado na cabeça. Ainda hoje me dá vontade de chorar quando conto essas coisas, porque foi muito triste. A mãe se jogou, tirou o laço que segurava o saco, beijou a criança…

Eu poderia contar muitas dessas histórias. Tem muita história triste. Quando você entra no presídio e escuta a história das pessoas, tem muita dor e muito sofrimento desde que nasceram. Aí, a gente diz assim: por que ela e eu não? Eu tive chance e elas não. Eu não sou melhor que elas. Então, é muito sofrimento e muita dor. A gente tinha esse contato também nas unidades masculinas. Tinha uma assistente social que era muito humana e facilitou nosso acesso…

DEFENSORIA: Era mais difícil trabalhar na unidade masculina ou na feminina?
IRMÃ GABRIELLA: Na feminina. Porque a mulher sofre muito mais. Não parece, mas a mulher sofre muito mais. Porque a sua preocupação não é para si mesma. A sua preocupação é para os filhos, é porque deixou a casa, é porque não sabe o que está acontecendo. Enquanto os homens se organizavam e lutavam por algumas melhorias, a mulher era mais difícil. Muito mais difícil. E também porque não tinha muita diferença, digamos assim, em termos de ambiente, entre o masculino e o feminino. Mas a mulher tem exigências que o homem não tem, mas são tratadas do mesmo jeito dos homens, sem a mínima atenção àquilo que são as exigências de uma mulher, mesmo presas. E até hoje não mudou muita coisa.

DEFENSORIA: Na Pastoral, além da questão feminina, quais outros temas são trabalhados?

IRMÃ GABRIELLA:
Quando cheguei em Fortaleza, a nossa preocupação, das quatro irmãs que moravam na mesma casa, foi com as mulheres. Porque as irmãs sempre visitaram as mulheres, desde que o presídio estava lá no centro de Fortaleza. Quando eu cheguei, já estavam no novo presídio. Então, a gente, semanalmente, ia visitar as mulheres. E àquela época nosso contato era bem distante. Depois, aos pouquinhos, conseguimos conquistar espaço e, finalmente, conseguimos entrar e entrar nas celas. Aí, era muito mais fácil pra nós porque a gente sentava lá, no chão mesmo, e a gente conversava, pegava o contato com as famílias, visitava também as famílias…

Tinha mulheres que não recebiam nenhuma visita e a gente providenciava kit de higiene, colchão, lençol, kit pra se maquiar, todas essas coisas que são necessidades da mulher. Não é porque está presa que ela perde seu lado feminino. De jeito nenhum.

Depois, sobretudo em algumas gestões, nós conseguimos organizar melhor a nossa presença. Como? Não só visitar as unidades, não só visitar as celas, mas também começar a organizar sessões de terapia comunitária. Me lembro que naquela época tinha muitas mulheres estrangeiras que não entendiam bem o português, algumas delas falavam só inglês e tinha uma italiana que, graças a Deus, falava português e falava inglês. Nesse círculo de terapia comunitária, a gente dava a palavra para expressar a própria dor. Eu lembro que uma vez, uma mulher da África do Sul que só falava inglês contou a sua história e era uma história de muita dor. De muito abuso e exploração sexual na sua infância. E, aí, a mulher italiana traduzia contemporaneamente pro português e eu via as mulheres chorando. Todo mundo emocionalmente entrosado naquela história. O fato de ouvir sem julgar, sem condenar, simplesmente ouvir, acolher a dor do outro, já é uma terapia. Por isso que a gente chama de terapia comunitária. Era um grupo de 30 mulheres e naquela época a diretora nos permitia usar um espaço bem bonito dentro do presídio.

Aí, depois, várias de nós fomos fazendo toda a formação em Justiça Restaurativa e Prática Restaurativa. Organizamos a escola de perdão e reconciliação, onde a gente aprende a trabalhar a raiva, a gente aprende a trabalhar a violência que tem dentro de si, a gente aprende a ressignificar a própria história. Tudo bem, eu não posso apagar o meu passado. Mas eu posso dar outro significado. Eu lembro de uma mulher que no final desse curso, aqui em Fortaleza, me disse: “irmã, eu tinha vontade de matar a pessoa que me prejudicou quando saísse daqui, mas depois desse curso eu perdoei e não vou mais fazer isso”. Além disso, fizemos outras práticas restaurativas, como os círculos de paz, a escuta individual e várias práticas que ajudam a pessoa a se olhar por dentro e dizer: “por que cheguei aqui? O que não deu certo na minha vida? O que ainda me machuca é que eu não consigo perdoar a mim mesma? Minha autoestima é tão baixa ao ponto de eu achar bom que os outros me maltratem?”.

Fizemos várias oficinas de direitos humanos, oficinas bíblicas. Fizemos várias coisas e percebemos que quando a gente consegue chegar nas intimidades das pessoas, aí muda. O contato de Jesus era sempre um contato muito pessoal. O que tu queres que eu faça pra ti? O contato com Deus é o que nos alimenta, nos sustenta, mantém as motivações mais profundas e nos permite enfrentar depois os desafios. Não é fácil. Não é fácil. Você chega no presídio e às vezes vai embora sem te deixarem entrar. Aí, quando você entra, vê muito sofrimento.

Eu lembro de uma mulher porque, em prática, matou o filho e quase tirava a vida do marido. Fez muito barulho em Fortaleza. Eu soube que ela estava fechada, sozinha. Eu falei com a diretora e pedi autorização para conversar com essa mulher, porque eu tinha certeza de que ela ia ficar doida. A diretora colocou à nossa disposição a sala do serviço social. Essa mulher chorou, chorou, chorou, chorou, chorou. Porque, além daquilo que ela fez, quem pode julgar? Quando passa na mídia que um jovem estuprou uma criança de três anos, é claro que me compadeço com a criança. É um crime tão grande, tão grande! E a família dessa criança? É por isso que eu digo que tem que pensar um pouco mais na Justiça Restaurativa, porque a Justiça Restaurativa não se esquece da vítima. A Justiça Restaurativa coloca no centro a vítima, o dano que ela sofreu e está sendo causado por aquele crime. Mas, ao mesmo tempo, eu digo: “meu Deus, o que levou esse jovem a cometer um crime tão bárbaro? O que tem na sua história? Como foi a sua infância?”.

Lembro que uma vez tivemos um encontro com várias instituições lá na SAP, que na época não era SAP e sim Secretaria de Justiça e Cidadania. E estava a Socorro França de secretária. A uma certa altura, ela me deu a palavra e eu disse: “aproveito pra falar que se a gente olhasse caso a caso a situação das mulheres, eu acho que só um 0,0 alguma coisa ficaria no presídio. Sabe por quê? Porque 67% das mulheres são presas por pequenos tráfico. Muitas vezes, a droga é do companheiro, do marido, do filho. Ela protege e vai pro presídio. Será que estamos ajudando essas mulheres? Não sei. Além disso, 20% ou 30%, não me lembro bem, cometeram furto. Por que uma mulher de periferia está furtando? Porque quem está dentro do presídio a maioria são negros e pobres. Por que está furtando? Ela precisa de presídio ou de políticas públicas?”

Em nível de Brasil, e no Ceará não é diferente, 67% das mulheres que são presas são por tráfico de drogas. Depois, tem uma porcentagem com transtornos. O presídio vai resolver o transtorno mental dessas mulheres? Ou elas precisam de uma clínica? E, depois, tem uma pequena porcentagem que estão presas porque maltrataram o filho ou mataram o filho. A gente parou pra refletir sobre o que levou uma mulher a maltratar ou matar o filho? O presídio vai resolver? A gente sabe que dentro do presídio elas são duplamente marginalizadas, excluídas e ameaçadas de morte. O presídio resolve o problema? Não resolve. O que resolve: uma clínica bem organizada que verdadeiramente vai focar o problema dessas mulheres. As que deveriam ficar dentro de um presídio são muito poucas.

DEFENSORIA: Como seria o mundo sem cárcere?
IRMÃ GABRIELLA:
A nossa sociedade resolve todos os problemas na área do crime, da pobreza e da exclusão, quando você pensa que a maioria dos presos, a nível de Brasil, são negros. A maioria, 99%, são pobres. Pouquíssimos deles têm o segundo grau. Muitos analfabetos. E a nossa sociedade resolve todos os problemas na área do crime, da pobreza e da exclusão com o encarceramento em massa. 

Nós somos o terceiro país do mundo que mais encarcera. E a diferença dos Estados Unidos, que é o primeiro lugar, e a China, que é o segundo lugar, é que no Brasil isso está crescendo mais rapidamente. Nós vamos resolver os problemas? Eu entendo que o Poder Executivo deve dar uma resposta à sociedade. Deve dar uma resposta. Só que a sociedade tem uma mentalidade fortemente castigadora e punitiva. Então, é claro que a resposta dos nossos governantes tem que se igualar a essa mentalidade castigadora e punitiva? Nós estamos propondo o quê? Outras alternativas.

Aí, você me pergunta: e quais são essas alternativas, além das que eu já disse? Resolver o problema de formas diferentes. Temos que encontrar outras formas. Porque temos que ajudar as pessoas a se responsabilizar por aquilo que fizeram. A pagar pelo que fizeram. Se um jovem de 19 anos assaltou uma mulher, eu jogo na prisão pra fazer o quê? Da vítima, a gente esquece. Que se vire. Por que não aplicar outras práticas levando o menino a tomar consciência daquilo que ele fez e de pagar os danos? Trabalhe e pague os danos. Os danos do celular, os danos causados à mulher, que teve que ir ao hospital… Pensamos e resolvemos só castigando e punindo.

Fortaleza e o Ceará estão passando por uma onda de violência muito grande. E não adianta nada maquiar a coisa, porque a violência está lá. Eu vejo onde eu moro, no Pirambu. É muita violência com o povo que vive mais naquele subúrbio, tão miseráveis mesmo. Lá, a Polícia chega, dá um pontapé na porta, entra, às vezes até se apodera daqueles poucos pertences e dinheiro que as famílias têm. E hoje os crimes são praticados de forma mais violenta.

Mataram um no Pirambu meses atrás. Depois de horas e horas e horas, o IML veio pegar o corpo e dias depois tinham alguns pedaços do corpo lá. Foi uma coisa macabra. É claro que não podemos aceitar isso. Quando eu só puno, só maltrato, eu estou só respondendo ao crime de maneira institucional, com violência institucionalizada, maltratando e eu vou continuar gerando violência. Quando a vítima não é atendida, não tem seus danos reparados, não é reconhecida naquilo que ela sofreu, ela vai gerar sentimentos de violência. E com toda razão. Aí, depois a gente fica assim: “por que tanta violência?”. Porque não estamos superando a violência. Estamos alimentando a violência. Continuamos assim.

O Estado acha que resolveu a coisa das facções. Não resolveu, de jeito nenhum. Olha que coisa absurda acontece: quando um rapaz é preso, uma das perguntas na triagem é “a que facções você pertence?”. Ele tem que se definir. Então, eu, o Estado, estou legitimando as facções. Absurdo! Tem famílias que dizem: “meu filho não pertencia a nada e teve que se colocar em uma”. Com as consequências do que poderia sofrer lá dentro e quando fosse sair. É bem complicada a questão da violência. Ou nós, de verdade, trabalhamos por um mundo de paz ou não sei onde vamos parar. E agora, que quase todo mundo pode comprar a sua arma, vai ficar até pior…

DEFENSORIA: Qual realidade a senhora encontrou aqui no Ceará era muito diferente do que a senhora viu em São Luís?
IRMÃ GABRIELLA: Sim. São Luís era, com certeza, muito mais pobre. Miserável mesmo. Em Fortaleza, eu comecei no feminino. O feminino funcionava num prédio novo. Parece que foi aberto em 2000. Então, lá era tudo muito frio. Não tinha contato de perto com as mulheres. Com muita dificuldade, depois de um tempo, conseguimos reunir 30 pra fazer terapia comunitária. É verdade que, de vez em quando, a gente celebrava a missa e a diretora liberava até 200 mulheres e aí era um contato mais próximo. Ou havia outros eventos que, de vez em quando, a administração penitenciária organizava no presídio feminino e fazia a diferença em relação ao masculino.

A gente viu também que as áreas de castigo eram horríveis. Era rato. Era falta de água. Era um buraco pra mulher fazer as necessidades no chão. Tinha só a roupa no corpo. Porque era castigo. Dez dias de castigo, senão, às vezes, era um mês. Mas também muita sujeira. Muita comida estragada, porque entrava também a alimentação das famílias. Mas, de qualquer maneira, nós conseguimos e foi autorizado o trabalho de terapia comunitária, círculos restaurativos, círculos de paz, reflexões bíblicas, celebrações. Ou seja: uma série de atividades que nos permitiam o contato, a possibilidade de nos abraçar, olhar nos olhos, de chorar, de sorrir… Foi uma conquista que foi se dando aos poucos. A gente também podia levar merenda. A gente levava normalmente coisas que lá dentro elas não comiam lá dentro.

Mas, a partir de 2019, com a nova administração, aos poucos, foi se fechando. O contato é zero agora. O contato é zero. Na última vez que eu fui num presídio masculino, a gente tinha organizado de celebrar uma missa, mas o espaço não permitia. Em prática, eram muitos homens, eles estavam em banho de sol e nós estávamos tão longe que a gente não conseguia nem distinguir o rosto. Mesmo assim, a gente rezou com eles. Aquilo me deu uma coisa e eu pensei: “meu Deus, estão perdendo toda a humanidade”. Nas mulheres, a gente visitava. Mas com elas atrás das grades. Não podia encostar porque era perigoso.

Aos poucos, tiraram de nós a possibilidade de levar violão pra tocar nem folha de canto. A gente entrava com um caderno e uma caneta, porque muitas mulheres não tinham visita das famílias. Não tinham notícias do seu processo. Então, a gente pegava o nome e o contato telefônico das famílias, entrava em contato e, ao mesmo tempo, repassava pra Defensoria ou pra equipe jurídica da Pastoral Carcerária alguns casos. Aos poucos, até de levar canetas nos foi proibido. Porque diziam que os nomes eram as agentes penitenciárias que pegariam. Aí, foi diminuindo cada vez mais o contato. É verdadeiramente muito difícil. Mesmo sem contato e só colocando o ouvido na grade, a gente conseguia recolher várias denúncias. Vários maus tratos. Foi sempre diminuindo até que chegou a pandemia e, em março de 2020, a gente parou. Voltamos no final de 2020 e conseguimos celebrar a missa no feminino. Nos colocaram no espaço da escola, com pouquíssimas mulheres. Eram, no máximo, 20. De 1.000. 

DEFENSORIA: Irmã, a senhora lembra do que sentiu na primeira vez que entrou num presídio?

IRMÃ GABRIELLA:
A primeira vez que eu entrei no presídio, eu tinha 20 anos. E foi na Itália. Eu fiquei assustada. Assustada, sabe por quê? O ambiente não era tão ruim. Tinha três irmãs. Não tinham agentes penitenciárias. Dentro do presídio tinha três irmãs. E elas criaram uma sala muito bonita, onde as mulheres passavam o dia bordando, costurando e fazendo outros trabalhos. Eram pouquíssimas mulheres, não chegava nem a 30, que viviam naquele espaço. E tinha algumas crianças também. Mas o que me assustou foram as celas. Porque não tinham janelas. Tinha só um buraco. Aquilo me assustou.

Quando cheguei no Brasil, o que me assustou era a situação das mulheres de São Luís. Aquela miséria, aquela sujeita, todas elas meio nuas, sem roupa, uma mulher que pariu no carrinho de mão e outra mulher levava… Depois, parece que tu nem mais vê, porque você cria uma relação e teu interesse vai pra outra coisa mais importante. Mas isso não significa que a gente não lutou para mudar aquela realidade. Aqui no Ceará, o que mais me assustou foi a distância com os presos e com as presas. Mas, mesmo assim, conseguimos, além do feminino, fazer círculos restaurativos em Pacatuba quando o presídio era de segurança máxima. Me lembro que tinha alguns com 15 anos de prisão. Fizemos no IPPS. Fizemos na CPPL III, que era onde estavam presos aqueles que cometeram crimes sexuais.

Eram 400 homens, mais ou menos, dentro daquele buraco. A gente entrava lá, fechava a porta e por duas horas a gente ficava lá com eles. Sem nenhum agente penitenciário. Só nós. Nunca aconteceu nada. Sempre nos respeitaram profundamente. E lá, a gente trabalhava. Era tão lindo, tão bonito esse contato, sabe? Tão bonito. E hoje não, não tem mais. Nós estamos voltando ao presídio agora. Nós vamos voltar porque fomos no fim de 2021, celebramos em alguns locais, levamos, graças a Deus, biscoito recheado. O que é pra você biscoito recheado? Mas quando vi aquelas mulheres chorando e dizendo que há dois anos não comiam um biscoito recheado… Estamos voltando, passamos por toda a burocracia pra fazermos as carteirinhas de acesso… Não sei como vai ser, mas uma coisa é certa: não vamos aceitar essa distância. Não sei o que vai acontecer, mas não vamos aceitar. Tem igrejas evangélicas que rezam e oram por multidões. Se ver ou não o rosto, não tem problema. Nós, não. O nosso é contato pessoal.

DEFENSORIA: Irmã, nesse contato pessoal que a senhora tanto fala e defende que seja retomado e ampliado, a senhora mais ensina do que aprende ou aprende mais do que ensina?

IRMÃ GABRIELLA: Olha, eu aprendo. Aprendo muito mais. Às vezes, no carro indo pra lá, a gente se pergunta o que vai acontecer: se vamos entrar ou não, porque a gente nunca sabe. A gente chega, se depara com histórias pra não nos deixarem entrar. Mas se consigo entrar e falo com duas ou três mulheres, eu volto pra casa feliz. Porque eu sei o que uma pessoa que está presa sente ao ver um rosto que não é o rosto da administração penitenciária. Não estou dizendo que toda a administração é ruim. Não. Tem gente muito boa. Mas é o sistema.

Veio aqui um mecanismo nacional e fez uma vistoria. Saiu um relatório e foi engavetado. Cresceram as denúncias, cresceram, cresceram… por quê? Nós organizamos, lá no Pirambu, 50 mulheres com familiares presos que nós já encontrávamos uma vez por mês fazendo círculos e chegavam denúncias de que a tortura se aperfeiçoou. Muitos presos tiveram ossos quebrados. Spray de pimenta. Toda uma série de prática de tortura que se usa e não acontece nada.

DEFENSORIA: Existe alguma humanidade dentro do presídio, irmã?

IRMÃ GABRIELLA:
(suspira) Eu não sei. Acho que sim. Eu tenho esperança que existe. Tem. Com certeza deve ter, só que não pode expressar muitas vezes. Com essa administração, é bom que tu não expresse. Porque muitos agentes penitenciários estão sofrendo.

DEFENSORIA: A sua história é de muita doação. A senhora consegue se olhar e se perceber nessa missão?

IRMÃ GABRIELLA:
Se tu me dissesses “vai trabalhar num manicômio”, eu não iria. Eu não tenho essa vocação. Acho que sofreria muito. Não tenho essa vocação. Agora, se disser “vai visitar um presídio”, eu vou. “Vai e fica lá, sentada na cela”, eu vou. Eu não tenho medo. Eu acho que tenho um sentimento de injustiça muito grande. Por exemplo: em casa, eu trabalho em um quarto que dá muito perto da rua, de modo que todo mundo que passa eu estou ouvindo. Quando passa uma criança chorando, eu corro e abro a porta pra ver se alguém está maltratando aquela criança. Ver uma pessoa maltratada, numa situação de inferioridade, de precariedade, de vulnerabilidade? Não. Não posso! Não posso! Eu tenho que ir!

Uma vez, eu voltava de ônibus. O ônibus fazia a curva pra pegar a rua onde está a minha casa. Quando fez a curva, vejo um montão de gente e um homem todo ensanguentado no chão. Eu grito pro motorista: “abra, abra”, por favor, e eu desci. Todo mundo batendo no homem e eu pedi: “parem! Não batam!”. Já tinham chamado a Polícia. Quando eu gritei, todo mundo me olhou achando que eu era uma doida e o rapaz se levantou rapidamente e entrou na casa vizinha. Na casa vizinha, tinha uma mulher com uma criança que, assustada, saiu na rua chorando. Todo mundo correu e a Polícia chegou com um fuzil, um revólver ou sei lá o que. Eu disse: “não. Pare um momento. Ele está no fundo da casa e não precisa que você use arma”. Eles me olharam torto, mas eu fui atrás dele mesmo assim. Queria ver porque não queria que maltratasse ele. Que pegue, tudo bem. É o dever do policial. Mas não maltrate ele. Não atire.

É claro que o que me motiva…eu sou uma seguidora de Jesus Cristo. Ele me encanta. Ele me encanta e eu sei que ele, no seu percurso histórico, fez uma opção. Ele fez a opção pelos últimos. Por aqueles mais sofridos. Os maltratados da sociedade daquela época. Então, a minha missão não poderia ser diferente.

DEFENSORIA: Por essa lógica, irmã, por que não o povo de rua, por exemplo? Por que não mulheres prostitutas?
IRMÃ GABRIELLA: Muito bem. Eu entrei pra uma congregação. Congregação é um grupo de irmãs que se inspira em algo do Evangelho e que, a partir disso, vai organizando sua vida. No mundo tem muitíssimas congregações. Dizem que nem Deus sabe quantas tem. A congregação que eu faço parte tem como missão a mulher em situação de vulnerabilidade. É mulher de rua? Sim. Mas é também a mulher em situação de prostituição. É a mulher em situação de encarceramento. E uma das primeiras coisas que nós fizemos foi dar atenção às mulheres que saíam da prostituição meio perdidas. Nós organizamos uma casa para acolher elas. E você sabe que a prostituição envelhece rapidamente a pessoa, mesmo que ela saia cedo desse mundo.

Tem também as mulheres que saíam do cárcere com todo aquele preconceito. E depois, quando começou a problemática da droga, nós abrimos uma comunidade para psicodependentes. Nós, assim como o Irmãs da Redenção, temos um projeto, que é o Em Defesa da Vida. É administrado por uma instituição que nós criamos. Nesse Em Defesa da Vida, nós temos três grandes projetos. Um de cultura, outro de cursos profissionalizantes para mulheres empobrecidas e um terceiro que é a escola de justiça para mulheres de 15 a 30 anos vítimas da exploração e querem organizar a vida. Tentamos proporcionar a elas a possibilidade de elas serem agentes de transformação social. Isso a gente faz 24 horas, lá no Pirambu. Aí, depois, nós visitamos o presídio.

DEFENSORIA: Por falar nisso, por que o Pirambu?
IRMÃ GABRIELLA: Duas irmãs chegaram aqui vindas do Maranhão. Elas começaram a visitar a beira mar. Naquela época, a beira mar tinha muito abuso e exploração sexual de criança e adolescente. Tinha turista estrangeiro e brasileiro. A gente caminhava lá, pela noite. E a gente via meninas de 12, 13 anos sentadas na mesinha com homens de 60, 70 anos! Isso chamou atenção. Encontramos também meninas grávidas lá na beira mar. Sem lar, sem nada.

E aí o que aconteceu: a gente viu que a maioria delas era do Pirambu. Porque estando perto dava pra ir a pé. Foi quando a gente decidiu escolher um lugar no Pirambu para trabalharmos. O lugar era tão pobre que quando chovia elas tinham vontade de abrir um guarda-chuvas. Quando cheguei, ainda era muito pobre, mas já tinha melhorado. Lá, temos uma estrutura com sete quartos.

DEFENSORIA: A senhora diz que atua principalmente em presídios femininos e que quando vai no presídio masculino são as mulheres que vão visitá-los. Ou seja: a figura da mulher é determinante em todos os cenários…

IRMÃ GABRIELLA: É. E tem uma coisa bem interessante. Quando tu vai no presídio, tu vê uma fila de mulheres para entrar no masculino que parece que nunca acaba, e tu vê uma fila tão pequenina no feminino. Até nisso, a mulher é esquecida. A mulher não esquece o seu companheiro, o seu filho, o seu marido. E, muitas vezes, a mulher é esquecida e não recebe nem visita. Claro, tem gente que recebe. Mas muitas delas não recebem.

DEFENSORIA: Irmã, como é o clima numa unidade prisional quando acontece uma rebelião? E como é a atuação da senhora numa situação como essa?

IRMÃ GABRIELLA: Quando aqui teve rebelião, nós fomos. No dia da rebelião, a gente conseguiu entrar onde os agentes penitenciários não conseguem. A diretora nos deu a chave na mão e fomos lá conversar com elas. Elas arrancaram os portões de ferro com as pedras ainda no portão. Como fizeram, não sei dizer. A gente procura, devagarinho. Como pode acontecer de alguém ser sequestrado, como fizeram com Dom Aloísio. Faz parte da vida. Faz parte. Eu posso morrer agora, saindo daqui. Por isso, eu não vou na rua?

DEFENSORIA: A senhora se arrepende, irmã, de ter enveredado por este caminho?
IRMÃ GABRIELLA: Não. De jeito nenhum. Queria entrar mais [nos presídios].

DEFENSORIA: Não pensa em parar?
IRMÃ GABRIELLA: Não. E até que tenho força. Não tenho aposentadoria. Na minha comunidade, tem uma irmã de 91 anos e ela trabalhou na pandemia costurando máscaras pra distribuir às famílias. É uma escolha de vida. É um ideal. Não sei nem como dizer. É algo que te pega.

DEFENSORIA: Como a Pastoral Carcerária atuou na pandemia se não entrava nos presídios?
IRMÃ GABRIELLA: Era com as famílias e com os egressos. E conseguimos, graças a Deus, por um ano inteirinho, garantir uma cesta básica pra cada família. São 50 famílias só do Pirambu.

DEFENSORIA: A senhora gosta de morar no Pirambu, irmã?
IRMÃ GABRIELLA: Sim, eu gosto. É lá que trabalho com mais ou menos 60 mulheres nos cursos profissionalizantes, mais ou menos 200 meninos no projeto de arte e cultura e mais 12 do projeto escola de justiça. É muito trabalho.


DEFENSORIA: A irmã perdeu pra violência meninos com quem trabalhava?
IRMÃ GABRIELLA: Muitos. Muitos. Muitos. Dentro e fora do presídio. É muita dor. Muita dor. Eu não tenho palavra, ainda mais porque a gente tem que lidar com a mentalidade punitiva e castigadora até mesmo do preso, que muitas vezes acha que merece ser castigado e a gente tem que dizer que ninguém merece ser maltratado. Deus não quer isso. Deus nos ama. Você consegue imaginar um pai e uma mãe que ama o filho e o tortura? Isso é uma ideia errada de Deus, de um Deus castigador, que é muito forte na sociedade.

DEFENSORIA: A senhora não acredita nele, nesse Deus?
IRMÃ GABRIELLA: Não. De jeito nenhum. Eu acredito num Deus misericordioso, que perdoa. Perdoar não quer dizer liberar a pessoa pra ela continuar errando. A questão é que aqui há uma falta grandíssima de política pública. Por exemplo: dois anos de pandemia. Dois anos que os meninos mais pobres das favelas de Fortaleza ficaram sem escola. Quando parou, fazia a primeira série. Quando volta, volta pra terceira série. Me diga qual o futuro dessas crianças?

DEFENSORIA: Sem contar que muitas vão pra escola pra terem o que comer…
IRMÃ GABRIELLA: É humilhante isso. Eu tenho que mandar um filho pra escola pra ele conhecer outra realidade que não a realidade da própria família!  A escola deveria ser um espaço pra contar da vida, pra ajudar a crescer na autoestima, que favorece a dignidade pessoal. O ensino fundamental não deveria ser nem pra passar conteúdo, mas pra criar vínculos. Deixa os conteúdos pra universidade! Se fosse assim, seria tudo diferente!