“Eu, quando estou em cima do cavalo, não tenho medo de nada. A gente tem é que ter medo de ter medo, mas homem nunca me venceu nem nunca vai me vencer. Porque se não fosse a mulher o homem não existia.”

Dina Maria
69 anos.

Mestra da Cultura e vaqueira boiadeira.
Nascimento: Canindé (CE).
Atuação: Canindé (CE).

“O sertão me ensinou a ser forte”

Do portão, a gente avista uma mulher, no fundo de um corredor comprido, daqueles típicos de casas antigas, vindo na nossa direção. Ela brada bordões sertanejos e caminha com o apoio de uma bengala, companheira inseparável há uma década – só não mais camarada do que o “pau do bêbado”, postado na entrada, ao lado da porta, onde mora há 35 anos, e usado para afugentar algum gaiato que se atreva aos enxerimentos.

Dina Vaqueira logo abraça. Não sem antes apanhar uma garrafinha de álcool e borrifar duas vezes o líquido nas mãos para, em seguida, colocar máscara de tecido. Afinal, beira os 70 anos e a pandemia não acabou. Mas já permite que ela nos convide para um café matuto, feito no fogão, no pano torcido, e acompanhado de queijo coalho. Admite que não sabe cozinhar, mas um ovo de galinha caipira frito faz como ninguém. E não fica sem a jarra de água com alho que guarda na geladeira para bebericar de quando em vez. “É bom pro coração”, ensina, pela sabedoria do sertão, sobre as propriedades da mistura, que podem reduzir as chances de um infarto agudo do miocárdio. Coisa que gente nova e “da cidade” só sabe dando um google.

À primeira provocação, Mestra Dina não se faz de rogada. Veste um gibão bonito, de couro escuro e talhado, que mais parece uma armadura, e com ele permanece toda a entrevista. Nem o mormaço de Canindé a faz tirar o adereço, que se mistura à calça preta e cobre a blusa estampada de onça. O chapéu, na mesma toada de cor e textura, tem duas inscrições dentro. Uma é o primeiro nome da própria vaqueira, como quem avisa: “não mexa; tem dona”. A outra é “Jesus”, o que transporta qualquer um imediatamente à fé professada por ela.

A casa de Dina é adornada de imagens de santos e fotos em todos os cômodos. Até no quarto no qual a sertaneja dorme foi feito um minialtar. A sala, ela transformou numa espécie de museu. Um museu-santuário, no qual narra a própria história como boiadeira e registra episódios do mundo da vaquejada de mais de meio século para trás. Tudo sob olhares de troféus conquistados em pistas Ceará adentro e Brasil afora, e estátuas sagradas. “Sou devota de todos, mas mais do Menino Vaqueiro”, confessa.

Há 13 anos distante da montaria, ela preserva as vaidades. Não abre mão do batom. Vermelho. Tem as unhas pintadas de prata, a mesma cor dos anéis. Usa brinco em forma de pingente banhado a ouro, exala um perfume doce, passa uma camada de rímel nos cílios, apruma os óculos e guarda no juízo, em rimas fresquinhas, a disputa de aboio com Luiz Gonzaga (sim, o rei do baião) que viveu quando era jovem. O mesmo tipo de canto do qual valeu-se o fotógrafo ZeRosa Filho, num atrevimento bonito de testemunhar, para convencer Dina a, depois de 72 minutos de conversa, ainda ir à Igreja Matriz da cidade, debaixo de um sol pestilento de mêi-dia, com uma imagem de São Francisco debaixo do braço para uma sessão de fotos. Tudo isso ainda com o gibão, hein! E sorrindo.

Desafio feito, ela peitou. Como o fez uma vida toda de enfrentamento ao machismo. “Um homem nunca me venceu e não vai me vencer”, devolveu. Ser a primeira mulher em espaços só com homens tem dessas coisas. Porque “lugar de mulher é onde ela se sente bem”. E Dina sentia-se bem na montaria, fazer o quê? Cabia ao destino curvar-se. “Eu, em cima do cavalo, não tenho medo de nada”, garante. Como ter tanta certeza? “O sertão me ensinou a ser forte”, arremata.

Na memória do peito, Dina guarda: a saudade do grande amor de uma viúva; os sonhos dos três filhos; a despedida do maior parceiro dos cavalos, vítima de envenenamento; o acidente que a lesionou na perna e forçou o afastamento das pistas de vaquejada; as diversas vezes nas quais foi subjugada por ser mulher; e o orgulho de ter sido, há 18 anos, reconhecida como Mestra da Cultura do Estado do Ceará.

Confira a entrevista.

DEFENSORIA: Mestra Dina, quem é a senhora?

DINA: Eu sou Dina Maria Martins Lima, conhecida por Dina vaqueira. Nasci na fazenda Barra-Cancão, no município de Canindé. Meus pais já faleceram, mas os nomes deles eram José Martins da Silva e Olinda da Silva. Comecei na vida de gado com sete anos de idade. Amanhecia o dia e via meu pai quatro horas da manhã já acordado, fazendo o foguinho de lenha e eu já tava do lado dele pra ajudar, pra tirar o leite da vaca pra minha mãe fazer o queijo. Aí, começava o dia. Já começava com os bezerros prum lado, as vacas pro outro, eu ia buscar o cavalo no cercado, buscar o comer pro gado…

Aí, meu pai me botou na escola. Mas eu era muito roceira pra ir pra escola. Eu estudava mais pra fazer os gostos do meu pai, né? Naquela época, era uma cartinha de ABC, uma tabuada, um saquinho de plástico e, às vezes, até uma bolsinha de palha, um lápis e uma gilete pra fazer a ponta do lápis. Muitas vezes, eu me escondia no caminho, pra não ir pra escola. Aí, quando os meninos passavam, eu pegava a filhinha do caderno e copiava a lição. Meu pai dizia assim: “Dina, tá tudo bem?”. E eu dizia: “tá tudo bem, senhor”. Tomava a benção. Disfarçava, né? Aí, fui crescendo, né? Um dia, a professora mandou chamar meu pai, que eu não tava indo pra escola. Mandou um bilhete. Eu corri atrás da menina que levava o bilhete, puxei os cabelos dela e tomei o bilhete. Eu disse: “você não vai contar pro Chico, meu pai”. No outro dia, eu fui pra escola e a professora disse: “Dina, você veio pra escola hoje?”. Eu disse: “vim. Não tá me vendo aqui?”. E ela: “você é muito linguaruda; tá de castigo”. E eu: “você me bota de castigo e depois eu saio; é a mesma coisa”. O tempo foi passando, passando e, quando foi um dia, a professora mandou chamar meu pai de verdade. Nessa época, eu já tinha uns dez anos. Papai perguntou: “Dina, você não está indo pra escola; não me negue”. Eu respondi: “ô, papai, é porque é tão longe.”

Era três quilômetros. Três pra ir, três pra voltar. Aí, ele disse assim: “você vai ficar de castigo em cima desses caroços de milho e vai me dizer a verdade”. Naquela época, a gente tinha que ser muito obediente. Aí, ele disse: “você quer uma vaca, uma bicicleta, um jumento ou um cavalo pra ir pra escola?”. Eu pedi um cavalo e ele me deu um potro de cavalo. Aí, eu comecei a amansar esse potro de cavalo. Eu ia pra escola e riscava mesmo no terreiro da professora; fazia poeira mesmo e a professora me botava de castigo, mas não tinha jeito não. O tempo foi passando e ele arranjou um colégio em Canindé. Arrumou um internamento pra mim, pra eu ficar quatro anos. Eu chorava muito pra não ficar no colégio. Assim mesmo, fizeram um acordo pra eu ficar de segunda a sexta, ao meio-dia. Quando era sexta ao meio-dia, graças a deus, eu me mandava pro interior.

Chegava lá, o papai vinha pra fazer a feira com minha mãe a cavalo e os caçoar pra botar a compra dentro, e ele dizia pras minhas irmãs: “não deixe a Dina andar de cavalo”. Aí, eu chegava pras minhas irmãs: “deixa eu dar uma volta nos cavalos que eu levo um bilhete teu e entrego pro teu namorado e trago do teu namorado e entrego pra ti”. Eu mesmo fazia o bilhete. Chegava lá, eu inventava era de cabeça que ela amava ele, marcava até encontro… Eu ganhei o coração das minhas irmãs com isso.

Aí, o tempo foi passando e a professora me matriculou como bandeirante, que era pra tomar conta dos romeiros na época da festa. Já melhorou um pouquinho. Em 1970, o frei Lucas, que era o vigário daqui, me convidou pra cantar na Missa do Vaqueiro. Pra organizar. E foi bom, porque eu organizei, convidei meu pai, meus irmãos e mais algumas pessoas. Foi muito bonita a missa. Aí veio 1971, 72, 73, 74, 75, 76…

Mas em 1970, eu me casei que era pra eu sair de dentro da casa do meu pai. Arrumei um namorado. Esse homem era muito bom. Era vaqueiro. Me casei pra ter a liberdade, porque eu sabia que ele era vaqueiro e ia me ajudar, me dar toda a liberdade. Em 1976, o frei Lucas disse: “Dina, Luiz Gonzaga vem pra cá. O que nós vamos fazer? Mande uma carta pro Aurélio Brasil, pra rádio Assunção”. Era a única programação que tinha naquela época pro sertão. Era só Gonzagão. Aí eu fiquei muito feliz. Convidei muita gente, o Aurélio Brasil convidando, dizendo que a partir de quatro horas da tarde o Luiz Gonzaga estaria fazendo um show pro vaqueiros… Quando foi três horas da tarde, nós se reunimos todo mundo na praça da gruta onde hoje é uma quadra pra celebrar missa pros romeiros. Nós saímos em cavalgada na cidade e viemos até o local. Eu com o estandarte de São Francisco na frente e os vaqueiros me acompanhando. Quando chegamos na Igreja, tava Luiz Gonzaga cantando essa música assim:

“Vaaaaai, boiadeiro, que a noite já vem/
Leva o teu gado e vai pensando no teu bem.”

Foi quando começou tudo. Eu desapeei do meu cavalo, olhei pro Luiz Gonzaga assim, tão bonito, aquele moreno cantando. Aí, os meninos disseram: “vai lá, Dina”. E eu disse: “eu não! Tá cheio de segurança aí”. Aí, o Luiz Gonzaga parou a sanfona e cantou assim:

“Morena tão boniiiiita, me diga onde você mooooora…”

Aí, eu olhei para um lado e para o outro. De morena, ali, só tinha eu mesmo, né? Eu fui e disse: “eu vou lá, agora”. Cheguei, peguei o microfonezim, que era à pilha, bem pequenininho, e falei “com licença” e respondi assim:

“Eu moro bem distannnnte, e meu marido está ali foooora…”

Aí, Luiz Gonzaga pegou o microfone e disse assim:

“Pois dê lembrança a ele, e se arretire e vá embora…”

Aí, eu pedi licença e disse: “um homem nunca me venceu e ele também não vai me vencer”. Aí, eu cantei assim:

“Eu vou me arretirannnndo, mas não é com medo nãããão.
É mostrando para o povo, Gonzaaaaga, a minha boa intençãããão, ohhh”

Aí, ele abraçou-se comigo e disse: “essa nega é das nossas”. Aí, eu cantei assim:

“Eu sou filha do Nordeeeeste, do sertão de Canindééé.
Vaqueira desde meniiiina, nessa profissão de féééé.
Minha arma é o aboooio, Gonzaga, e a coragem de mulher, ohhhh”

Aí, ele abraçou-se comigo e disse: “essa nega é das nossas”. Mas eu não me conformei, sabe, de ver aquilo. Terminou a missa, muito bonita, eu peguei um cavalo de um amigo, o mais brabo que tinha e todo mundo bateu palma. Aí começou os convitezim das vaquejada. Se espalhou que tinha uma mulher vaqueira. Vinha os convitezim pra fazer as abertura das vaquejada…

Passou-se os dias e chegou um vaqueiro na casa do meu pai e eu nunca gostei de cozinhar. Faço uma coisinha ou outra, mas cozinhar pra valer eu nunca gostei. Eu tava na casa do meu pai quando vinham descendo dois vaqueiros e um fazendeiros, e eu me escondi de trás da porta. Eles vêm atrás de uma novilha de vaca que está junta do gado do meu pai. Às vezes, a gente tem um sentido, né? Eu me escondi atrás da porta e pensei: “é hoje”. Quando o fazendeiro chegou, perguntou se a novilha dele tava junto da nossa. O papai disse que só quem podia saber disso era eu. Me chamou e eu saí de ponta de pé. Disse que ia selar o meu cavalo e que era pra eu mostrar pra ele essa novilha. Eu fiquei cheia de perna, fiquei toda feliz. Papai selou o cavalo e eu pedi pra vestir a roupa de couro dele. Naquela época, mulher usava só vestido e saia. Eu criava dois cachorros: o perigo e o perigoso. Eram vira-lata, mas eram muito bonitos. Saí galopando e os cachorros brincando. Quando cheguei na lagoa, consegui apartar essa novilha. Derrubei a novilha e entreguei pro fazendeiro. Ele ficou muito admirado. Quando chegou no curral, o fazendeiro disse pro meu pai: “compadre Zé Martins, eu vi uma coisa difícil de ver hoje. A Dina foi quem pegou a novilha e entregou pra nós”. E papai disse: “não, eu tô certo e já recebendo uns convites pra ela fazer a abertura das vaquejadas.”

Só que quando eu chegava nas vaquejadas era muito difícil. Porque homem nenhum aceitava eu usar uma roupa de couro e correr. Mas eu não tava nem aí. Eles chegavam me provocando; diziam tantas coisas comigo. Falavam palavrão. Diziam assim: “vai pra casa; lugar de mulher é em casa”. E eu dizia: “você é muito é otário; lugar de mulher é onde ela se sente bem e vocês vão ter que me engolir”. Me desafiavam e eu enfrentava mesmo. Ou eu nem escutava.

O dono da fazenda me dava a liberdade d’eu correr com quem eu quisesse pra fazer a abertura. Soltavam um garrote ou uma rês ou uma novilha de vaca. Muitas vezes eu derrubava. Às vezes, não e eu dava pro companheiro. Tinha deles que eram muito machistas e me humilhava mesmo. Diziam: “olha, ela deu o rabo pra fulano”. Era muita humilhação. Muito preconceito por eu vestir uma roupa de couro e correr no meio de um gado numa vaquejada. Às vezes, eu estava e eles passavam com cachaça e derrubaram nos meus pés. Eu me levantava e só ria. Mas Deus sabe do meu coração.

DEFENSORIA: A senhora lembra a primeira vez que a senhora montou?
DINA: Lembro. A primeira vez que eu montei num cavalo foi um cavalo muito brabo. Meu pai tinha um potro de cavalo que não tinha quem montasse nele. Peguei ele, encostei ele num toco, consegui botar a sela nele. Esse cavalo pulava muito, mas não conseguia me derrubar. Quando foi a outra vez, ele já estava bem mais manso. Eu montava escondida do meu pai. Até que um dia meu pai disse: “engraçado, esse potro tá bem mais manso”. Eu tinha dez anos. Eles me chamavam de capeta. Diziam que eu era um capeta porque eu conseguiu amansar um animal. Mas por quê? Porque o animal, às vezes, conhece a gente.

A partir daí, eu enfrentei muito preconceito. Foi muita luta mesmo pros homens me aceitarem usar uma roupa de couro e correr em vaquejada.

DEFENSORIA: Nenhuma das suas irmãs e nenhum dos seus irmãos enveredaram pela vaquejada?
DINA: Nenhuma. Meus irmãos também não. Eu que recebi o convite da festa de Itapebussu, pra ajudar a organizar. No primeiro ano, foram 80 vaqueiros comigo. Os de lá não me aceitavam. Mas eu tinha carta branca dos organizadores e foram quase 40 anos eu correndo no parque de lá.

DEFENSORIA: A senhora hoje é viúva e tem filhos em São Paulo e Fortaleza. Mora sozinha aqui em Canindé. Como foi a construção da sua família?

DINA: Um dia, na Missa do Vaqueiro, eu e um rapaz trocamos olhares e ele disse que ia pedir meu pai pra namorar comigo. Eu achava que meu pai não ia deixar. Meu pai disse que eu ia namorar, mas era ele do lado de fora e eu do lado de dentro de casa. Não era pra se beijar. A gente só conversava sobre gado mesmo. Aí, chegamos à conclusão do casamento. Fomos casar e morar na fazenda. Nessa fazenda, que ele tomava conta do gado, eram 1.000 reses. Só gado, afora cavalo, criação… Quando amanhecia o dia, eu dizia que ia pro campo, ele selava um cavalo pra mim e eu ia com ele pro campo, campear. Aí, eu fiquei grávida do meu primeiro filho e campeei até sete meses.

Depois de 17 anos na fazenda e eu sendo uma escrava de trabalho, botando de comer pro gado, fazendo queijo, ajudando de madrugada vaca a ter bezerrinho, depois de 17 anos, meu marido pegou uma doença na cabeça e disse que ia comprar uma casa na cidade. Nós compramos essa casinha e no mesmo ano meu marido faleceu. Eu fiquei com os três filhos. Eles ficaram estudando aqui. Eu vi que as condições eram muito difíceis. Mas eu não deixava de ir pras vaquejadas. Minha filha uma vez pediu pra eu não ir mais, porque tinha medo de acontecer algum acidente comigo e eles ficarem sem mãe.

Um tomava conta do outro, até que uma das minhas filhas sofreu um acidente e disseram que só tinha tratamento em São Paulo. Ela foi pra São Paulo e nem precisou do tratamento, mas começou a estudar e a estagiar num hospital. Depois, mandou buscar a outra menina, formou-se em biomédica, a mais nova começou a estudar também, pra ser técnica em Enfermagem, e o menino foi trabalhar e morar em Fortaleza. E, graças a Deus, estão todos com vida encaminhada. Eu fiquei aqui, trabalhando pela Prefeitura, ganhando uma mixaria. Os anos foram se passando e eu trabalhei 34 anos de serviço, até que me aposentei e fiz um empréstimo pra reformar essa casa todinha. Mas nunca deixei de correr em vaquejada. Eu tenho um orgulho muito grande dos meus filhos, e acho que eles têm de mim.

DEFENSORIA: Alguma das suas filhas mostrou algum talento pra ser vaqueira?
DINA: Não (risos). Elas diziam que não tinham coragem. Queriam estudar e falavam que viam a dificuldade que eu enfrentava. Que viam meu esforço e o preconceito que eu enfrentava. Aí, eu botava elas pra estudar, pra fazer lição. A gente teve uma vida de muita felicidade, sabe? Apesar de que não tiveram pai e o homem da fazenda não pagou o tempo que ficamos na fazenda, mas tudo passou. E elas tinham orgulho de gostar de estudar.

DEFENSORIA: E foi uma vida muito humilde?
DINA: Foi, muito humilde. Nós passamos um período muito difícil, que se a gente almoçasse tinha que dividir metade pra janta. Quando eu fiquei viúva. Mas tudo passou. Tudo passou. O meu filho é um rapaz muito bom. Nunca me deu trabalho. Nunca fumou, nunca bebeu. Ele ajudava muito com as irmãs. Em mim, às vezes, ele queria me botar moral e a gente conversava. Nós somos muito amigos. Eu criei eles sem pai, mas eles reconheciam que não podiam me dar trabalho porque eu estava no lugar de pai e mãe.

DEFENSORIA: A senhora é responsável por duas datas do calendário a favor da história dos vaqueiros: dia 8 de dezembro, a missa do vaqueiro, e dia 26 de fevereiro, Dia do Vaqueiro. Como a senhora acha que essas datas preservaram a cultura?

DINA:
Eu sempre gostei de lutar pela cultura. E muita gente me acompanha. Quando foi um dia, um padre entrou aqui dizendo que não queria celebrar a missa do vaqueiro porque fazia muito barulho na cidade. Eu fiquei nas emissoras de rádio chorando, dizendo que era uma tradição e vinha muita gente de fora. Até que um dia, peguei a documentação e fui na Câmara. Pedi um dos vereadores pra colocar o dia do vaqueiro no calendário. No dia 22 de agosto, é o dia do vaqueiro. Mas não me conformei. Me combinei com um dos vaqueiros mais idosos pra ir na Assembleia, na Fortaleza. Quando chegamos na rodoviária de lá, pegamos um ônibus e, na Assembleia, batia na porta de um e de outro. Todo mundo dava um não. Batemos mais e eu lembrei que corri com o pai de uma deputada, a Lívia Arruda. Falamos com a secretária pra ela colocar no calendário a missa do vaqueiro e o dia do vaqueiro. Com três dias, me ligaram, confirmaram as informações e foi onde passou o dia do vaqueiro ser 22 de agosto e a missa ser no período das festas de São Francisco. Foi com muita luta que a gente conseguiu.

DEFENSORIA: A senhora disse que o começo foi tudo difícil. Como é que a senhora conseguiu dobrar esse macharal todo?

DINA: Com muita força e sorrindo. Eles chegavam, sacudiram cachaça nos meus pés e diziam: “por que a morte não mata uma mulher dessa?”. E eu dizia: “cuidado, que tu pode ir primeiro”. Eles não aceitavam eu ser mulher e usar uma calça de couro, e me provocavam. E a resposta era assim. Eu me levantava e saía e dizia: “eu tô com sede é d’água, não é de cachaça”. Uma vez, um me deu um copo com Coca-Cola com areia. Eu tomei dois goles e pensei: “eu vou dar três chicotadas nesse cabôco”. Aí, peguei ele pelo braço, dei três chicotadas boa nas costas dele e disse: “isso é pra você nunca mais provocar uma mulher”. Eu fiquei tranquila e foi daí que todo mundo começou a acordar que comigo ninguém mexia. Dei as três chicotadas pra ele aprender a respeitar as mulheres.

Foi o tempo em que eu formei a associação de vaqueiros. Convidei amigos pra gente formar a associação. Depois, em 1995, vieram associações pro Ceará. Pra quebrar o tabu e o preconceito deles, alguns amigos mais idosos que me respeitavam, me colocaram como presidente da associação. Muitos não me aceitavam, mas eu fui manobrando devagarinho e mostrando meu trabalho. Tudo aconteceu aos poucos.

Na época, começamos com 25 vaqueiros associados. Aí, depois, foi crescendo pra 50. Foi pra 100. E disparou. Quando era na missa do vaqueiro, a gente colocava 1.000 vaqueiros na rua e foram vendo que meu trabalho era diferente do que eles pensavam. Eu não dava muita trela não. Falou? Um dia, você se cala. Mas ainda hoje sofro com preconceito.

A associação ainda existe e tá toda legalizada. Conseguimos um terrenozim pra fazer uma sede pequena. De 2004 pra cá, conseguimos um terreno grande pra fazer a Casa do Vaqueiro. São 55 metros de fundo com 30 de frente. O terreno tá todo legalizado. Tamo esperando só pela justiça divina pra gente construir. Cada vaqueiro vai ter sua história lá. Aqueles que já faleceram, vão ter os filhos. Aqueles que ainda estão na ativa, vão ter sua história lá.

DEFENSORIA: A senhora disse que ainda hoje sofre com preconceito. Mas mudou alguma coisa desde quando a senhora começou a ser vaqueira boiadeira?

DINA: Mudou. Mudou muita coisa.Porque as moças mais jovens foram querendo ser vaqueira. É tão engraçado. Elas iam pra associação e o namorado não deixava. Quando casavam, o marido não deixava. Hoje, temos mulheres que correm em vaquejada. E Itapebussu foi um espelho muito grande. Porque eu, mulher, comecei a correr lá e começou as mais jovens criando gosto. Foi bom porque hoje, eu, com 68 anos, tô sentindo que pessoas jovens se dedicam a essa classe. Elas aqui e acolá sofrem preconceito, mas eu sempre digo: “não diga nada não, faça o seu trabalho e você chega onde quer chegar.”

DEFENSORIA: Mas a senhora peitava o macharal e agora diz pra não fazer isso?
DINA: Porque hoje a coisa tá muito relativa, né? O jovem hoje, quando faz a pega de uma novilha, querem correr em vaquejada. Então, a gente trabalha em harmonia. Eu digo que o silêncio é a melhor coisa que pode existir. Porque eu enfrentei muito. Eu fui ofendida e desejavam a minha morte. A gente enfrentava.

DEFENSORIA: A senhora fundou um grupo musical, “A rainha e os vaqueiros”. Quando a senhora lembra disso, que música vem primeiro no seu coração?

DINA: Eu cantava assim:

“ôôôôô, já fui alegre e feliz neste mundo enganador/
hoje só tenho uma mágoa, da jura falsa de amor/
amanhã serei feliz, nos pés de nosso senhor.”

Pro preconceito que nós sofre sendo mulher, eu fiz um aboio assim:

“ôôôôô, mulher tem que ser amada, toda hora e todo dia/
se não fosse a mulher, o homem não existia/
por isso nós têm que mandar, minhas amigas, de noite e de dia, ôôôi/
homem mandando em mulher, isso é coisa da antiguidade/
amos todos respeitar a lei da igualdade/
ele manda numa banda e nós na outra metade, ôôôi.”

Era assim que eu começava e os homens começavam a ver que não era mais por aí que humilharam a Dina. Hoje, muitos chegam e dizem que judiaram muito de mim no tempo que eu era nova e agora, com os netos em vaquejada, eu dou todo o apoio. Eles me chamavam de mulher-homem, de macho-fêmea, faziam de tudo pra ver se eu desistia. Mas eu não dava trela pro que eles falavam. Eu tinha força de enfrentar eles. Eu chegava, me sentava e eles sacodiam pedra, sacodiam terra…

DEFENSORIA: Quem foi que lhe disse que a senhora podia?
DINA: Meu marido. Ele disse: “você pode ser vaqueira e ser uma mulher muito forte”. Ele me dava muita força. “Dina, não baixe a cabeça”, ele dizia. E eu pedia pra ele que quando falassem algo sobre mim ele também não dissesse nada não. Eu pedia muito a ele que tivesse muita calma, porque sempre tinha uns gaiatinho que a gente tinha que levar na esportiva. Eu pedia calma porque sei vencer as coisas. Se eu quero vencer na vida, muita calma. Eu fui muito briguenta. Hoje, eu não brigo mais. O tempo passou e as pessoas que me humilhavam muito não estavam mais, os que me massacravam muito também não já estavam e os empresários iam tirando inscrição de vaquejada pra eu correr. Foi quando foi tirando um pouco do preconceito.

DEFENSORIA: Aqui na sua casa, a gente vê que tem muita imagem de santo. A senhora é devota de quem? Ou é de todos?
DINA: Sou devota de todos, mas tenho apreço muito grande pelo Menino Vaqueiro e São Jorge. Eu via muito meu pai falar em Menino Vaqueiro, mas eu não conhecia a religiosidade de Menino Vaqueiro. Meu pai dizia: “quando sumir uma rês, um animal, tem que se valer de Menino Vaqueiro”. Só que eu não me ligava muito em religião. Meu pai todos os dias botava gente pra rezar o terço. Agradecia muito a Nossa Senhora, Menino Vaqueiro, São Jorge e Santa Joana D’Arc. Menino Vaqueiro é um santo.

Aí, um dia, eu peguei um cavalo, era no mês de maio, e do outro lado tinha umas éguas. Eu ia numa bodega comprar umas coisas e o cavalo disparou comigo. No rumo das éguas, tinha um arame. Ele ia me matar ali. Eu tinha certeza que não ia mais ser Dina. Quando eu disse assim: “valei-me, meu São Francisco, Menino Vaqueiro, São Jorge!”, o cavalo parou e ficou todo se tremendo. Eu não sei se foi São Francisco, Menino Vaqueiro ou São Jorge quem me salvou. Eu acalmei o bichinho e pedi ao meu Menino Vaqueiro que me ajudasse a montar e ele não disparar mais. Aí, fui, voltei e contei ao papai. Ele disse que foi Menino Vaqueiro quem me protegeu. E eu achei que o Menino Vaqueiro era o santo da minha devoção.

Com São Jorge, foi assim: um dia, eu vim buscar meus filhos aqui na cidade, onde eles estudavam. A gente desceu do ônibus oito horas da noite. Quando nós chegamos na Santa Clara, que nós descemos do ônibus, eu senti que um animal me acompanhava. A gente sentiu umas pisadas por dentro da cerca, sabe? Era quase dez horas da noite. Aí, eu pedi: “meu glorioso São Jorge, se for uma onça, me proteja”. E eu dei um assobio e os cachorros latiram lá longe. Nós conseguimos atravessar o rio d’água. Só que o animal ficou. Quando a gente chegou em casa, eu disse: “Fernando, aconteceu uma coisa muito estranha”. Aí, eu contei pra ele. No outro dia, quando foram olhar, acharam a pata de uma onça. Era uma onça. Então, foi São Jorge, que é um santo guerreiro, quem me valeu naquele momento.

Sobre religião: às vezes, crianças que vêm fazer estudo aqui sobre a minha história, trazem Padre Cícero, São José, São Rafael, São gabriel… Dizem: “ó, tia, esse santo é da devoção da minha mãe”. E bota o santinho aí. É assim a minha devoção.


DEFENSORIA: De tudo o que a senhora já fez na sua vida, qual foi o que mais marcou?
DINA: O que mais me marcou foi em Itapebussu. A primeira vez que eu fui pra vaquejada de Itapebussu, eu corria todas as pedras de mourão, né? Pedra de mourão é aquela vaquejada simples, que você vai encourado. Em Itapebussu, quando eu cheguei, o organizador disse que eu ia correr com os armadores. Eu disse que não sabia correr com esse povo e pintaram um boi todo lavrado, no símbolo da novilha de praça. Consegui pegar no rabo do boi e colocar na mão do seu Afonso, que era um dos vaqueiros mais antigos, e ele derrubou. Foi uma coisa que me marcou pro resto da vida estar numa das maiores vaquejadas do Nordeste. Eu correr naquele parque com os armadores e ser famosa?

Um momento marcante também foi cantar com Luiz Gonzaga. Fazer verso com ele, com aquele artista, com aquele homem tão bonito? Me marcou pro resto da vida. Eu tenho certeza de que a alma do Luiz Gonzaga vem me ajudando, sabe? Foi naquele momento que começou eu a crescer mais na vida, a não ligar mais tanto pra preconceito… Eu queria me tornar uma vaqueira. Mas vaqueira famosa.

DEFENSORIA: E a senhora conseguiu, né? Como é pra senhora ser a rainha dos vaqueiros?
DINA: Um dia, eu tava na biblioteca, eu trabalhava na Prefeitura e ficava na portaria recebendo todas as assinaturas das crianças e tomando conta das crianças. Em 2004, chegou uma professora e disse que tinha ido me inscrever como “mestre da cultura”. Eu não sabia o que era. Perguntei o que era e ela me disse que era uma coisa criada pelo governador Lúcio Alcântara. Aí, eu fiquei feliz, né? E perguntei o que eu fazia. Ela me mandou juntar tudo o que eu tinha e mandar pra ela. Mandei e ela fez meu dossiê.

Quando foi dois meses depois, eu liguei o rádio e ouvi que Canindé tinha uma mulher chamada mestre da Cultura. Essa professora ligava pra mim e não conseguia, porque eu não vivia em casa. Eu vivia trabalhando, pra cima e pra baixo. Na época, o Gilberto Gil na época era ministro da Cultura e a doutora Cláudia Leitão era secretária da Cultura. Nem foi preciso votação. Eu passei diretamente. Depois, me ligaram dizendo que eu tinha que ir pro Cariri receber o título, porque mais quatro mestres tinham sido contemplado. Me botaram pra subir numa ema e foi bom demais, sabe? Eu fui andar nessa ema e era igual um sofá! Aí, me levaram numa fazenda pra fazer uma entrevista. Aí, eu subi num cavalo muito bonito e saí manejando o gado. Me pediram pra cantar um verso e eu cantei assim:

“ôôôôôôô, eu só quero bem a gado porque gado me quer bem/
quando eu chamo, o gado uiva, quando eu grito, o gado vem/
eu não troco amor de gado pelo amor de ninguém, ôôôi/

Isso foi de dia. Quando foi de noite, fui na festa e recebi meu diploma. Eu não tinha mais gibão e tomei emprestado o gibão de um vaqueiro que fedia a couro de bode que só o diabo. Fedorento que só! Eu plantei perfume nesse gibão e o bicho misturava a catinga de couro de bode com o perfume. Aí, o Gilberto começou a cantar:

“a vida aqui só é ruim quando não chove no chão/
mas se chover dá de tudo…”

Aí, eu cantei com o Gilberto Gil, né? Recebi meu diploma e agradeci à Diana Gomes, que foi quem fez de tudo pra eu ser mestre. Dei um monte de entrevista. Fiquei muito feliz. Cheguei em Canindé e tinha uma programação. Nesse mesmo período, a professora Sheila, que trabalhava na Prefeitura, veio me dizer que eu tinha que ir pra Brasília pra acompanhar os mestres da cultura. Viajei com ela e quando cheguei era um seminário de muitas mulheres. Muito bonito, mas botaram um homem pra cantar que era das bandas do Crato e cantava se desfazendo da mulher. Aquilo me perturbou. Eu fiquei perturbada, sabe? Será se ele não era filho de mulher? Aí, eu pedi pra doutora Sheila ir lá e pedir o microfone pra eu cantar um verso. Ela foi, falou com o rapaz da programação, eu peguei o microfone e cantei assim:

“ôôôôôôô, me chamo Dina Maria, do nordeste brasileiro/
sou digna mãe de família, fui esposa de vaqueiro/
por isso, eu represento, minhas amigas, o nordeste brasileiro, ôôôôi”

Ele cantou mais um verso e eu disse que agora ia cantar um verso pra ele. Aí, eu cantei assim:

“eu sou filha do Nordeste, do sertão de Canindé/
vaqueira desde menina, nessa profissão de fé/
minha arma é o aboio, meu companheiro, a coragem de mulher, ôôôôi”

Aí, ele cantou outro e eu cantei assim:

“eu sou mestra da cultura, sou vaqueira e sou mulher/
o homem, pra me ganhar, não é um homem qualquer/
e se ele me ganhar, meu amigo, vai fazer o que eu quiser, ôôôi”

A mulherada bateu paaalma. Eu falei que ia cantar outra, pra terminar. Porque eu não queria que ele me vencesse. Aí, eu cantei assim pra ele:

“eu num vou querer um homem pra me trazer aperreio/
fica pedindo perdão, pois isso é muito feio/
na hora da dormida, eu boto uma tauba no meio, ôôôi”

Aí, pronto. Aí, acabou e a mulherada ficou toda toda e o homem não cantou mais nada. Foi quando a Secult começou a reconhecer, que em toda programação dos mestres eu tinha que dar minha palestra, tinha que cantar, alguma coisa que agradasse, né? Mas foi o que calou a boca dele, porque eu já tava inquieta.

DEFENSORIA: A senhora já disse que é filha do sertão. O que o sertão ensinou pra senhora?
DINA: O sertão nosso, que é um sertão querido, me ensinou a ser mais forte. A ser uma mulher mais forte. Mais determinada na luta. Eu limpava de enxada, eu roçava de foice, eu cortava de machado, eu selava um cavalo e ia para o campo, eu ia buscar comida pro gado num animal, e foi isso que me fortaleceu mais, né? Eu sou uma mulher mais forte, sou uma mulher mais determinada. A não ter medo de qualquer luta. Pode me entregar qualquer luta, que eu dou conta. Eu gostava muito da vida do sertão. Hoje não, porque estou com essa idade e não posso mais enfrentar o que enfrentei na vida.

DEFENSORIA: A senhora também comentou que seu marido lhe dizia que “se for de vencer, a gente vai vencer”. Venceu?
DINA: Venci. Ele sempre dizia: “Dina, se você quer vencer, você vai vencer”. Eu lembro bem que toda vida que a gente tinha uma programação, o patrão sempre chegava na fazenda. Uma vez, a gente vinha pra missa do vaqueiro e quando o patrão encontrou a gente eu disse que não ia voltar. O patrão me marcava muito porque eu não abaixava a cabeça. Eu fui pra missa sozinha. Foram cinco léguas, naquele tempo eram léguas, de onde a gente morava pra Canindé. Eu voltei sozinha e cheguei cinco horas da manhã. O Fernando me disse: “eu lhe admiro porque você é uma mulher corajosa e não tem medo de nada”. Eu, em cima de um cavalo, não tenho medo de nada. Ele me dava muita força. Se eu queria ir pro campo, eu ia. Às vezes, ele dizia pra eu não ir pro campo. Quando ele saía, eu selava meu cavalo, ó, e me mandava. E, assim, a vida vivia. Quando voltava, já tava tudo pronto. Eu fazia tudo muito rápido, né? Ele dizia assim: “tu foi, Dina?”. E eu dizia: “fui. Você também num foi? Como é que foi o dia lá no campo?”. Ele chegava em casa cansadim, sabe? Tirava a roupa de couro, ficava ali, muito cansado, porque o vaqueiro, quando sai pro campo, ele passa fome, passa sede, mas a gente não sente se a gente tá com fome ou com sede, acredita?

Um dia, nós ia correndo atrás de uma novilha de vaca muito braba. E os vaqueiros na frente e eu atrás. E os cachorros também. Aí, a novilha de vaca pulou de uma grota pra outra. E todos os vaqueiros fizeram essa mesma coisa. E eu disse: “eu vou enfrentar também”. Esporei o cavalo e pulei de uma grota pra outra. E foi isso que me fez fortalecer, né? Porque ele me dava muita força. Ele me dava muita coragem. Eu ia pra vaquejada, a gente comprava a inscrição e às vezes ele dizia: “Dina, você quer correr com fulano? Ele quer correr com você”. Amigo dele mais próximo. E eu dizia: “eu vou”. Aí, a gente ia. Me fortaleceu muito, sabe? Por isso que, quando ele morreu, eu não quis mais ninguém na minha vida. Foi por isso. Porque eu tinha certeza de que não vinha um igual àquele. Foi um parceirão. Muito parceiro na minha vida. Muito, muito, muito.

DEFENSORIA: Mestra Dina, a senhora já contou um monte de coisa bonita, mas a vida de ninguém é feita só de vitórias, né? A senhora já caiu muito de cavalo?

DINA: Não. De cavalo mesmo, eu não caí. O cavalo caía comigo, eu me segurava, ele caía comigo e se levantava, eu esporava mas não caía. Um dia, um cara fez uma coisa pro cavalo cair comigo, mas eu não caí. O cavalo caiu comigo, mas eu não caí. Agora, uma vez, eu fui socorrer uma criança, trupiquei e bati com o joelho numa pedra. Parece coisa do destino, né? Mas nunca caí de cavalo não.

A última vez que eu montei pra valer mesmo foi em 2010. De lá pra cá, foi muita cirurgia nesse joelho. Agora recente, a gente fez umas entrevistas pro programa da Globo, da Fátima Bernardes, e eu montei. Montei, mas não matei minha saudade. Eu sinto falta, mas só que eu não tenho mais aquela vontade de montar do jeito que eu tinha meu cavalo. Porque o meu cavalo eu conhecia. Quando mataram meu cavalo envenenado, eu fui começando a ficar desanimada, a não montar mais em animal brabo e a não ter mais aquela vontade que tinha de montar.

DEFENSORIA: A gente se afeiçoa mesmo ao bicho?
DINA: Com toda a certeza. O potro de cavalo que meu marido me deu, só quem montava nele era eu. Com qualquer pessoa, ele não se dava bem. Mas comigo ele se dava bem. Quando eu montava nele, ele ficava calmo. Eu dizia: “calma, meu Misoso! Calma, Mimoso! Calma Mimoso”. E ele tinha calma, num sabe? Eu alisava ele e tudo. As pessoas só montava nele pra bater no bichim, né? Eu pedia calma e ele sentia calma. O animal conhece a gente. Quando eu dava um assobio, ele relinchava. Eu botava um cabresto nele, dava banho nele, botava ele na sombra e ele se sentia feliz. A mesma coisa era com os meus cachorros. O animal se sente feliz quando a gente gosta dele.

DEFENSORIA: Tem 12 anos que a senhora não monta, mas isso não significa que a senhora não esteja se mexendo. O que faz a senhora, com 68 anos, depois de tudo o que passou e com a limitação que tem na perna, continuar nessa lida?

DINA: É vivendo mesmo, o dia a dia. Hoje aparece uma coisa pra fazer, amanhã já tem outra e depois já tô pensando em outra. Onde é que tem uma missa pra nós ir? Onde que tem uma novena? Aí, tem a associação, que em todo primeiro sábado de cada mês a gente se reúne e já vem um assunto! Essa luta desse terreno foi muito difícil. Foram muitos anos de luta. Tá faltando ajuda, mas nós vamos conseguir. Tudo isso faz a gente começar a pensar. A gente começa a pensar e sempre aparece uma luz. Sempre aparece aquelas pessoas boas na vida da gente que é uma luz. Eu não me sinto que tenho 68 anos. Eu faço coisa hoje que aos 40 anos eu não fazia. O meu problema é só que eu não posso mais montar, porque se eu montar pode ser que a prótese vai sair fora. Eu não me canso.

DEFENSORIA: Mas também não é só isso. Não é só a luta do vaqueiro. A senhora é uma liderança que resolve muito problema pra muita gente. Como é isso?

DINA: Muitas vezes, a porta bate. Acontecia muito de sábado pra domingo, mas diminuiu mais depois que chegou a Guarda Municipal e o Raio. Eu abro só a porta, o cadeado não, e pergunto o que é. Aí, a pessoa diz, por exemplo, que o filho tava bebendo e querendo confusão e a Polícia levou. “Mas ele não tava rezando”. Eu sempre dou essa resposta. Aí, a pessoa me pede pra ir na delegacia com ela, às vezes duas horas da manhã, e eu me arrumo e saio. Às vezes, vou até a pé. Vou, pergunto o que aconteceu, digo que vamo chamar um táxi e deixar a pessoa direto em casa, pra evitar confusão. Aí, as coisas acontecem.

Muitas vezes, eu tô dormindo e a pessoa me chama dizendo que fulano tá no hospital, muito doente, sem conseguir atendimento. Eu me levanto e vou porque, graças a Deus, a gente também tem conhecimento. Com muita conversa, o médico já medica e se for pra ficar internada fica. A gente liga pros amigos, que trabalham na saúde, e consegue uma consulta, um remédio… Assim vai. É uma luta dia a dia.

Tem família aqui que não recebe o Bolsa Família e chega aqui falando que o filho tá passando fome. Eu pego uma moto e vou verificar de é verdade. Quando vejo que é verdade, vou e volto e converso com meus amigos e fazemos uma cesta básica pra entregar. Aí, vamos deixar bolacha, café, sardinha, feião… Sempre tem pessoas bondosas!

Um dia, eu tava na biblioteca e nunca esqueci. Era meu último ano de trabalho e eu nunca me esqueço. Uma vez, uma pessoa me disse: “eu tava em casa pra fazer o de comer no seu filho e a senhora deu o depoimento de um ladrão que entrou na casa da senhora e a senhora venceu”. Eu senti o depoimento da sera como força”. A pessoa me disse que eu não tenho medo de nada. E eu disse que a gente, mulher, tem que ter medo de não ter medo. Graças a Deus, em todo lugar que eu chego, a porta se abre.

DEFENSORIA: Mestra Dina, falta fazer o quê? Porque a gente olha pra sua parede e tem troféu e foto em todo canto…

DINA: Depois que eu realizar meu sonho, que Deus faça de mim o que eu merecer. É construir a Casa do Vaqueiro. Quero deixar um legado pros vaqueiros mais jovens. Aqui, na minha casa, tem só a minha história. Mas tem muitos vaqueiros que têm muitas histórias bonitas também. Eu já disse para os filhos: vocês vão ter que fazer a história do pai de vocês. Eu construindo a Casa do Vaqueiro, pronto, eu sou a mulher mais feliz do mundo.

DEFENSORIA: A senhora acha que a figura do vaqueiro vai desaparecer algum dia?
DINA: Vai não. É uma coisa muito séria que a gente tá passando de geração pra geração. Eu digo muito isso aos jovens: não deixe essa geração se acabar. Se Deus quiser, eles vão criar gosto. Se um dia a gente fizer uma reunião com empresários que dão muito valor à figura do vaqueiro e eu tenho certeza de que eles nunca vão deixar cair…

DEFENSORIA: E se acabar?
DINA: Acaba não. Eu tenho certeza que não vai se acabar. Eu tenho certeza, porque se eu faltar tem alguma pessoa mandada por Deus que vai continuar. O que me dá mais certeza é que os jovens também se empenham. Rapazes e mulheres mais jovens. Mesmo casados, vão se empenhar nisso. Eu deixando a Casa do Vaqueiro toda prontinha, eu tenho certeza de que não vai se acabar nunca.

DEFENSORIA: E a senhora vai até quando nessa luta?D
DINA: Ihhhh, até quando o dia que Deus quiser! Mas eu tenho certeza de que ele vai me dar muito anos de vida ainda. Tenho certeza!